O livro das cousas que acontecem

Capa
O livro das cousas que acontecem


Autor Daniel Pellizzari
Ilustrações Luiz Pellizzari
Gênero Fábulas metarrealistas
Coleção Tumba do Cânone
Ano 2002
Especificações 120p. ; 11,5x21cm
Preço R$ 20,00 (como comprar)
Sobre o autor Daniel Pellizzari nasceu em Manaus em 1974, e mora em Porto Alegre desde um pouco antes de completar dez anos. Filho de psiquiatras, perdeu algum tempo no curso de Psicologia da UFRGS, para desespero de seus pais. Buscando alegrá-los, tentou perder tempo em três outros cursos, mas foi distraído pelas cousas mais urgentes. Publicou seus primeiros textos em antologias no início da década de 90, mas só começou a ganhar leitores a partir de 1995, despejando linhas no não-lugar conhecido como internet. Fez parte do já lendário e-zine Cardosonline e é um dos fundadores da editora Livros do Mal, por onde publicou também seu primeiro livro, Ovelhas que voam se perdem no céu (2001).



Trecho do livro
"Em um dia ímpar de junho, e estava frio, Douglas leu na página 10 de um jornal de bairro, reservada a uma seção de curiosidades, que o espirro é a segunda sensação física mais forte que pode ser experimentada pelos humanos. A primeira da lista, ainda segundo a seção de curiosidades da página 10 de um jornal de bairro, é o orgasmo. Naquele exato momento, e era cedo, Douglas decidiu vender seu carro, de oito anos de idade mas bem-cuidado, e também abandonar seu emprego, que era o de diagramador de jornais de bairro, para se trancar no quarto de casa, onde morava com o pai, que era corretor de imóveis aposentado e certa vez seduziu uma cliente em uma quitinete com vista para o rio, e vejam vocês, a cliente era casada e acabou por engravidar e bem, onde estávamos mesmo? Ah: no momento em que leu a tal curiosidade sobre espirros e orgasmos Douglas desistiu de qualquer outra coisa na vida, inclusive de verificar a veracidade da informação, que, como todo mundo sabe, poderia ter sido inventada na hora por um redator entediado, que poderia ser grisalho, e não faltam grisalhos e entediados em redações de jornais, que são uma coisa realmente muito desinteressante e que trazem cabelos brancos de montão à cachola e, como eu estava dizendo, Douglas largou tudo e ficou trancado no quarto tentando espirrar e ter um orgasmo ao mesmo tempo. Tentou diversos métodos, ao curso de vários anos, inclusive sem perceber que seu pai havia morrido na sala, sentado na poltrona, enquanto assistia um jogo de futebol da terceira divisão, que a propósito terminou empatado em zero a zero, e ficou ali azedando e apodrecendo e se cobrindo de vermes e fermentando e fedendo e virando um esqueleto de pantufas enquanto Douglas, no quarto, emagrecendo sem parar, tentava ter um orgasmo e espirrar ao mesmo tempo. Ao aspirar exatos 2,78 gramas de pó-de-mico pelas duas narinas, já forradas com rapé mentolado, enquanto mantinha a regularidade a pressão dos movimentos de sua mão direita ao redor do pênis, que ao cabo de tanto esforço já estava como alguns pontos em carne viva e uma cor definitivamente arroxeada, parecida com a de sua prima Alice quando morreu afogada aos sete anos, ao cair no açude fugindo de Douglas, que com nove anos queria apenas tirar a sua calcinha e trocar pela sua cueca, porque sentia muito prazer ao usar calcinhas de algodão com estampas de bichinhos, e a dela tinha vários porquinhos, que eram cor-de-rosa e usavam gravatas-borboleta, e, voltando ao assunto, desta maneira Douglas conseguiu finalmente espirrar e ter um orgasmo ao mesmo tempo. Achou bom, mas ponderou que, para algo a que se dedicou tanto, poderia ter sido melhor, até porque no momento exato não conseguiu decidir se mantinha a concentração no espirro ou no orgasmo ou nos dois ao mesmo tempo e acabou prestando mais atenção nesta dúvida, que permanece, pois em nenhuma das quatrocentas e dezoito vezes subseqüentes em que repetiu a experiência teve calma para chegar a uma decisão sobre o que deveria sentir. (...)"



O que foi dito
"Quem se espantou com o vigor da estréia de Daniel Pellizzari, em Ovelhas que se perdem no céu, tem novos argumentos de estranhamento. (...) As 14 histórias revelam uma maior unidade temporal e de estilo, qualidade de ritmo e encadeamento do que a primeira obra. E é bem mais agressiva, exposta num tom ultra-realista. Se o realismo mágico exige um pacto de magia, a crença aqui é instaurada na absoluta descrença. Ninguém acredita em nada e, portanto, tudo é possível. Os personagens – outsiders – são pedestres da loucura. Caminham à toa pelas suas idéias, neuroses e lembranças. Passaram dos limites, não se dão conta e fracassam ao comunicar seu desespero. Inconseqüentes, resvalam na autodestruição do desejo. O desejo subordina as ações singelas aos extremos da carência. Um funcionário de sex shop limpa as cabines de masturbação e, de repente, descobre o sabor doce do esperma e procura, ensandecido, o dono da golfada. As circunstâncias, as normas e as convenções desaparecem no ato de busca. O que existe é apenas a obsessão. Como num filme de Robert Altman, as histórias conversam entre si de forma invisível e casual. Um aposentado convive com estranhos buracos que falam no corpo. Uma cidade desaparece do mapa. Causa-consequência não funciona nesses parâmetros, unicamente conseqüências da conseqüência. Os episódios começam do nada, de uma mudança absurda de ordem, de uma novidade. São inverossímeis e coagem pelo exagero. Mas é preciso não confundir com humor grotesco e negro. Não há gargalhadas pontuando as piadas. O risível é comovente, fazendo a sensibilidade adquirir uma posição crítica, um mal-estar permanente, perquirindo a validade da rotina (as tragédias irrompem à medida em que as alucinações ganham uma rotina). A mulher que mata as pessoas num simples bater de botas (metáfora popular da própria morte) não consegue conter a autoridade da fantasia e do ego. Em Pellizzari, mundos virtuais disputam as possibilidades das fábulas. A narração segue um andar delicioso, de desprendimento, que honra os epítetos de um Campos de Carvalho. Veja o fragmento do conto Modo de dizer: "Francisco, um homem de sorriso magro, cabelo líquido e fidelidade nula". Para ganhar dessa síntese, somente os "ácaros sonolentos"." (Fabrício Carpinejar, Rascunho)

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"Um ano após publicar o primeiro volume de contos, Ovelhas que voam se perdem no céu, Mojo, um dos pioneiros em usar a internet como veículo e escritor mais tatuado da literatura brasileira, escanteia a maldição do segundo livro comparecendo com um exemplar mais bem acabado de sua bizarra contística: O livro das cousas que acontecem. Bizarra porque os temas de Pellizzari não são assim, digamos, freqüentes na literatura daqui. A começar pela filiação - um incerto surrealismo urbano, no Brasil visitado por raros escribas: Campos de Carvalho, José Agrippino de Paula, Murilo Rubião, Moacyr Scliar, Ignácio de Loyola, Nelson de Oliveira e mais meia-dúzia. (...) Quando se aproxima do fantástico, o autor se sai melhor. O termo, na arquicitada formulação de Cortázar, caracterizaria certa "hesitação" entre real e irreal, jamais entregando ao leitor a certeza de que aquilo que é contado se trata de invencionice ou relatório. É o causo dos perturbadores contos gêmeos "Sêmen de outras pessoas" e "O próprio sêmen". O primeiro narra a vida de um funcionário de sex shops encarregado de limpar o esperma que os clientes deixam nas cabines de peepshows; o funcionário tem uma epifania ao ver uma cabine tomada por litros e litros de sêmen - e lhe vem uma súbita vontade de beber tudo. No segundo, um divorciado à procura de um novo apartamento sente-se impelido a masturbar-se em todos os imóveis que visita. Sem apelar para fantasias, alegorias ou explicações, aqui Pellizzari demonstra que o absurdo a contaminar o cotidiano pode ser muito mais corrosivo. (...) [...] O livro das cousas que acontecem é perigoso. Vem com aquela sensação de risco que só livros desacomodados trazem: fazer o leitor olhar o mundo à volta e se perguntar 'E se...?'". (Ronaldo Bressane, Jornal do Brasil)

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"Desta vez parece que Pellizzari quer mostrar como nossos cérebros e conceitos são fracos e confusos diante das cousas que acontecem. Porque, sim, os personagens estranham e tentam explicar os absurdos que lhes batem à porta (literalmente). Mas acabam se confundindo ou simplesmente cansando da lógica. Isso aparece também nas ilustrações de Luiz Pellizzari (irmão do autor): são desenhos de animais que estão muito próximos de serem comuns, mas algo ali está fora do lugar. Um pouco como o trabalho de MC Escher, que convida a uma releitura, a uma atenção diferenciada (e não o surrealismo ululante de Dali). Mesmo a diagramação do livro rompe com alguns costumes das editoras: páginas pretas onde geralmente ficam as aberturas de capítulos, citações que causam efeito de "estranhamento" e inúmeras piadas internas. Tudo leva a crer que em Cousas, o autor quis demarcar seu terreno e sua estética: como em A Lua Vem da Ásia (de Campos de Carvalho), Pellizzari matou o professor de lógica e ainda riu com certo sarcasmo. É como se dissesse: "afinal, o quê vocês querem esconder de si mesmos com sua linearidade e conceitos aparentemente sólidos?" (...) O Livro das Cousas que Acontecem bate uma foto (cheia de personalidade) desse mundo que teme, mas convive com o absurdo. E sua principal virtude é a locação: em vez de usar "o mundo dos escritores, dos poetas e dos pensadores", Pellizzari usa as ruas. Por isso, em vez de reclamações e gemidos intermináveis, temos humor e, principalmente, coragem." (Eduardo Fernandes, Fraude)

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"A delícia desta leitura está justamente em surpreender-se com o atrevimento literário do autor, que desde suas incursões pela internet vêm criando um estilo original e próprio que faz a perplexidade do leitor a cada página. Pellizzari tem a grande virtude de não ser pretensioso, como outros autores. Ele apenas constrói um universo próprio, denso, tenso, bem sedimentado e cheio de referências. E isso, acredite, não é pouco." (Renata de Albuquerque, www.literaturaonline.com.br)

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"Este livro é a certeza definitiva de saber que Pellizzari se encontra em território seguro ao transitar por temas que podem beirar a esquisitice e o mondo bizarro. As histórias não precisam de explicação, não são cheias de moral, não tem um porquê. O sêmen pode ser a doce redenção de um limpador de cabine de sex shop, da mesma maneira que pode ser a marca a ser deixada pelos imóveis visitados por um divorciado à procura de um apartamento. Metarrealismo é, realmente, a melhor definição para designar o perturbador mundo destas cousas todas, ainda que revestidas por bastante sensibilidade, e que acaba por nos levar aos limites das sensações: o nojo, o absurdo, o irreal adquirem feições verossímeis." (Alessandro Garcia, Digestivo Cultural)

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"Insistindo na renovação, o autor amadurece suas intenções. Aqui, abatido por um sentimento de excentricidade diante da obra, percebi que novos horizontes literários são encontrados nas entrelinhas, como se fossem segredos, e estar com os poros abertos para decodificá-los é o primeiro passo. Um homem que descobre o prazer de degustar o sêmen alheio, um diálogo entre os falecidos escritores Samuel Beckett, Julio Cortazar, Kafka e o poeta russo Danil Kharms, um homem que acorda na manhã seguinte com um buraco no meio da testa. São coisas que acontecem. Em seus contos, cada final reserva uma surpresa, até mesmo na própria falta de surpresa, quando o leitor, na expectativa de um desenlace inesperado, depara-se com um final resignado e singelo. No começo, o leitor ainda faz o movimento de avanço e recuo, mais tarde, já entretido, deixa-se fluir pelas peripécias da narrativa, numa espécie de deleite fantástico." (Rodrigo Moreno, Ócio do Caramujo)