Clipagem


Revista VOX XXI - número 24
novembro de 2002
Por Cris Gutkoski


Tédio profundo

Havia uma enorme expectativa rondando o terceiro título da editora Livos do Mal, que nasceu em 2001 sob o patrocínio do Fumproarte. Os dois primeiros livros, Dentes guardados, de Daniel Galera, e Ovelhas que voam se perdem no céu, de Daniel Pellizzari, venderam bastante bem, com resenhas elogiosas em jornais e revistas importantes do país. Fazia um tempão que a novíssima literatura produzida no Rio Grande do Sul não causava tanto alvoroço. Galera e Pellizzari são estreantes promissores, escrevem com gana, têm idéias engenhosas.

Jogada nas alturas, a expectativa foi frustrada com o lançamento de Vidas cegas, de Marcelo Benvenutti. De novo, trata-se de uma coletânea de contos, gênero que talvez merecesse uma pausa dada a dosagem generosa de boas surpresas dos dois títulos anteriores. Na verdade, os textos curtos de Benvenutti enquadram-se mais na subcategoria narrativas. Conto é outro departamento.

Borges e Guimarães Rosa escreviam contos. Sergio Faraco, Amilcar Bettega Barbosa, Cíntia Moscovich e Altair Martins são contistas gaúchos. "Triângulo", de Galera, e "Um Hamster", de Pellizzari, são dramas memoráveis na forma de conto. Já os textos curtos de Vidas cegas não deixam marcas na lembrança do leitor, ainda que tédio profundo seja uma sensação incômoda.

E para que raios serve uma literatura da qual se esquece rapidamente? As vidas cegas do título, além do trocadilho com Vidas secas, de Graciliano Ramos, sugerem uma lista grande de minibiografias. São 69 ao todo. Puxa, que número engraçadinho. Quanta sugestão em dois algarismos. E depois ainda culpam a Xuxa por infantilizar tudo o que toca. A lista das vidas começa com nomes próprios, "A vida de Jonas", "A vida de Júlio", Joana, Sandra, Gustavo, Clara, Clarissa, mas Benvenutti pelo jeito não teve fôlego ou saco para imaginar tantas personas ligadas a nomes que merecessem minificções, então lá pela narrativa de número 37 a coisa deriva para "A vida do poeta", do ator, do troco, do céu, da lágrima seca.

O problema é que a vida se ausenta e não pulsa nas descrições singelas de Benvenutti, como pulsa, por exemplo, nas frases ainda mais lacônicas dos minicontos de Fernando Bonassi. Neste caso são segundos de leitura, e lá está a angústia dos aeroportos cravada a fogo ("Eu tenho tanta saudade de você que poderia agarrar qualquer uma dessas perfumadas que me passam na frente nessas escadas rolantes", trecho de Passaporte, Cosac & Naify, de 2001). As narrativas curtas de Vidas cegas têm aberturas em geral bocejantes ("Em Tirana, na Albânia, existia um policial de nome Ulisses" ou "Os galhos das árvores se movem com o vento de setembro") e finais preguiçosos ("a poesia morreu", "as mentiras não morrem", "e expirou". A frase inicial e a frase final, em contos, são definidoras, são de uma responsabilidade inarredável. Com poucas exceções, como em "A vida do suicida cínico" e "A Vida dos Búfalos", Benvenutti titubeia nesses dois extremos, e o miolo perde o gosto.

Não se pode dizer que o autor não tenha tentado. Em "A Vida das Mulheres Chuvosas" há lirismo rasgado ("e então tu me encontra numa noite clara e me diz amor vou chover em ti" ou "eu preciso abraçar alguém com sentimentos"). Seriam imagens bonitas mesmo se acompanhadas de pontos e vírgulas. No meu prédio na Cidade Baixa há pelo menos três aspirantes a escritor que já fizeram contos sem parágrafos, com um único ponto final. O prédio onde moro tem apenas três andares. "A vida de Fábio" resume as relações digitais, virtuais, da rotina profissional pós-Internet, época veloz e cansativa que Galera já havia embalado com mais talento no conto "Dafne Adormecida". Benvenutti ensaia umas desconstruções da língua ("seus cacos farinha sendo levados pelo vento mentira aborto"), mas se entrega antes do fim: "porque o fato de transformar meus sentimentos nessa insensível coletânea de palavras alegra a mentira da minha vida".

Pronto. A literatura da qual se esquece rapidamente também serve de publicação tipo auto-ajuda para os próprios autores estreantes. Mas era só o que faltava para a linha editorial de um projeto que se pretende ousado e independente. A Livros do Mal poderia apostar numa narrativa longa para a próxima vez. Há de ter algo que preste nas redondezas. Dá trabalho ler 45 originais e descartar 44, mas essas são as vidas dos editores, fazer o quê.