Clipagem


Todapalavra
Por Flávio Ilha


Livros que não vieram para ficar

Não se trata de clássicos da literatura. Definitivamente, não. São narrativas voláteis, que tendem a se perder no mar de confissões que invade as ondas da internet todos os dias, impulsionadas também pelo mercado veloz dos livros de consumo. Os temas são ásperos; estranhos, até. O non-sense é quase uma regra da geração de escritores agrupados principalmente na editora Livros do Mal, criada em 2001 e responsável por alguns dos lançamentos mais discutíveis de 2002. E não que uma obra discutível seja, a priori, ruim. Não se trata disso. Ainda que não possam ser elevados à categoria dos livros que vieram para ficar (ao contrário de alguns dos autores), os textos têm energia. Uma energia que não torna a leitura propriamente agradável, muito menos interessante, no mais das vezes. Mas que, pelo menos, é capaz de sacudir a poeira do establishment publicitário-literário que nos invade a cena, ao flertar com a iconoclastia como estilo narrativo.

Ocorre assim, por exemplo, com os contos de Cristiano Baldi (Ou Clavículas, R$ 15), em que uma poética agressiva não pede licença para passar: "(...) As escolas (ao menos as particulares) deveriam ter mais professoras como ela. Vez por outra, me trazia uma aluninha para foder. (...) Deixava a aluna no sofá, nos apresentava e saía para comprar croissant (...)". Uma seqüência de obscenidades e distúrbios sórdidos segue perturbando o leitor - incluindo aí prostitutas "anãs" e um ensandecido que se diz o Príncipe da Dinamarca - até o limite da paciência: num livro produzido para destruir consciências puras, é necessário mais que uma galeria de tipos esquisitões. E é esse o problema, então: uma literatura que pretenda apresentar alguma novidade (seja temática, seja estilística) deveria oferecer também conteúdo, sem abdicar das esquisitices alheias. Pancada com sacada. Porque muitos autores já expuseram em detalhes a vida sexual de suas personagens. Seus desejos grotescos, as soluções bizarras que encontraram. Muitos já enfrentaram os absurdos da vida e o fizeram com inegável talento, sem mergulhar no terreno fértil da violência ou do sexo. Mas com esses ingredientes, claro, tudo fica mais fácil.

Se a rotina oprime, use-se o sexo. Se o sexo não agrada mais, use-se a violência. Se o mundo não te entende, misture os dois em doses abundantes. Sexo e violência estão ali para pontuar as histórias quando o recurso da imaginação findar. E ele finda, pois não há nada nos textos de Baldi que indique alguma revolução estética ou novidade temática. Há sim uma profusão de situações absurdas - algumas de evidente mau gosto - descritas em frases de efeito, do tipo "(...) não será o momento de fazer uma terapia grupal, que bem escolhida sempre acaba em putaria?" Bem, isso não é propriamente uma piada literária.

Não é o caso, entretanto, de Daniel Pellizzari, provavelmente um dos mais consistentes escritores dessa geração internética. Especialmente no seu primeiro livro, Ovelhas que Voam se Perdem no Céu (R$ 15), o autor consegue forjar um painel amplo e criativo das mazelas humanas, seja em relação ao amor/sexo, seja em relação à vida cotidiana. A técnica narrativa invariavelmente busca reproduzir o fluxo de pensamento, mas isso não torna o conjunto de 19 contos enfadonho. Pelo contrário: ainda que haja um certo recurso exagerado ao inusitado, ao fantástico, as histórias conseguem transmitir uma sensação de urgência em relação à vulgarização do cotidiano e da vida das pessoas, que grassa pelo mundo globalizado sem que tenhamos força para reagir.

Já no seu segundo volume, O Livro das Cousas que Acontecem (R$ 19), as coisas se complicam um pouco. Apostando no tom agressivo, as narrativas abusam da escatologia sem, contudo, oferecer uma alternativa ao inferno real. Não que uma obra de arte tenha de apresentar saídas, mas fica-se com a impressão de habitarmos um mundo desesperado em que os pedidos de ajuda não são ouvidos em parte alguma. Não se trata de encontrar esperança onde não há sequer resquícios de humanidade. A questão é não transformar a literatura numa simples caixa de ressonância das frustrações alheias (leia-se, bem entendido, das personagens). Nem fazer dela eco de obsessões que não têm outro objetivo que chamar a atenção pela insuspeita originalidade. Que dizer do ex-diagramador que passa os dias procurando razões para insistir na experiência de espirrar e ejacular ao mesmo tempo?

O mesmo tom de ressaca invade os contos de Dentes Guardados (R$ 15), de Daniel Galera. A discussão tende a se concentrar novamente na perplexidade das pessoas com as mudanças bruscas do mundo à sua volta, que gera uma certa insatisfação perene. E, claro, um tom blazé que perpassa boa parte das 14 histórias do livro. Nem a melhor das narrativas (Triângulo) consegue escapar dessa espécie de sina, em que as identidades se confundem em busca de um reconhecimento que não está mais visível a olho nu. Há, todavia, um choque de interesses que torna a leitura bem menos penosa que de outros autores oriundos da internet, com seus inconfundíveis períodos truncados, opiniões desnecessárias e vírgulas em profusão.

Marcelo Benvenutti, por sua vez, é conciso e um tanto mais superficial. Suas "vidas" narradas no volume Vidas Cegas (R$ 21) apresentam como traço comum a concentração em flashes de existências comuns, sejam elas pessoas ou objetos. O resultado é monocórdio, burocrático. Como leitura, que deve incluir o relacionamento do texto com as palavras, não se realiza. Não dá prazer. Ao se debruçar em instantes determinados de cada criação, Benvenutti sonega informações sobre personagens que poderiam render mais se não fosse a pressa - ou inabilidade, talvez - do autor em encontrar o essencial de cada narrativa. Assim, a vida da mendiga Sílvia ou do contador desempregado Francisco são cortadas do seu conteúdo dramático para dar vazão a um estilo bruto, em que a emoção deve ficar por nossa conta. Pode-se inferir que nossas vidas são assim mesmo, sem lógica, cheias de devaneios absurdos e absolutamente pessoais, apenas - como já definiu Vladimir Nabokov - um curto-circuito entre duas eternidades de escuridão. Que seja. Mais um motivo para que o escritor - qualquer um - nos ofereça um pouco mais que o simples sabor amargo das ruas.

E se era para meter medo, acho que apenas nos fizeram perder tempo.