Clipagem


Fraude
outubro de 2002
por Eduardo Fernandes

Texto das idéias que me ocorrem

Daniel Pellizzari lança segundo livro e mata professor de lógica – por Eduardo Fernandes


Vai soar a veadagem, mas vá lá: O Livro das Cousas que Acontecem, novo lançamento de Daniel Pellizzari, é uma experiência cognitiva. Como é que é? Segura que lá vem cabecismo.

O livro compila 14 fábulas metarrealistas. Ou seja: buracos nascendo em testas, cachorros narrando os próprios espancamentos, a vida de amantes de sêmen colhido in natura, e por aí vai. Se você leu o livro anterior, Ovelhas que Voam se Perdem no Céu, já conhece a temática do autor. Mas agora há muito mais humor, leveza e impacto.

Desta vez parece que Pellizzari quer mostrar como nossos cérebros e conceitos são fracos e confusos diante das cousas que acontecem. Porque, sim, os personagens estranham e tentam explicar os absurdos que lhes batem à porta (literalmente). Mas acabam se confundindo ou simplesmente cansando da lógica.

Isso aparece também nas ilustrações de Luiz Pellizzari (irmão do autor): são desenhos de animais que estão muito próximos de serem comuns, mas algo ali está fora do lugar. Um pouco como o trabalho de MC Escher, que convida a uma releitura, a uma atenção diferenciada (e não o surrealismo ululante de Dali).

Mesmo a diagramação do livro rompe com alguns costumes das editoras: páginas pretas onde geralmente ficam as aberturas de capítulos, citações que causam efeito de "estranhamento" e inúmeras piadas internas.

Tudo leva a crer que em Cousas, o autor quis demarcar seu terreno e sua estética: como em A Lua Vem da Ásia (de Campos de Carvalho), Pellizzari matou o professor de lógica e ainda riu com certo sarcasmo. É como se dissesse: "afinal, o quê vocês querem esconder de si mesmos com sua linearidade e conceitos aparentemente sólidos?"

Além disso, em alguns contos, a linguagem usada é a de rua, o portoalegrês. Que afinal, não é muito diferente do periferês (dialeto da periferia da cidade de São Paulo) e, guardadas as proporções, nem do scots (dialeto de Edimburgo, Escócia), que Irvine Welsh usa em seus textos.

Questiona-se, principalmente a concordância, o uso dos plurais. Valoriza-se a oralidade, o ritmo. Por isso, impressa, essas linguagens colaboram na experiência cognitiva, no estranhamento. Não teriam o mesmo impacto se fossem apenas faladas – já que estamos habituados a elas.

O cotidiano do absurdo

Talvez Pellizzari seja um dos autores que melhor refletem no Brasil um caminho que parte da literatura vem tomando no mundo. Se com alguns russos, irlandeses e belgas do século passado (ooops, ontem), aprendemos a questionar a lógica e a racionalidade, os novos autores já têm esse fenômeno mais ou menos assimilado.

Ainda se trata de investigar a confusão mental da nossa época, mas no cotidiano, nas ruas. E nos desejos mais íntimos que (depois de décadas de debates entre psicólogos, psicóticos e psiquiatras) nem soam mais tão horrendos, e sim incômodos, fora de contexto. Estamos mais no nível da prática, da convivência (sociologia) do que dos conceitos (epistemologia).

Certas filosofias orientais estão há cerca de 7000 anos investigando o assunto. Nós ainda oscilamos entre recuperar algo dos projetos e ideais Iluministas ou encarar de vez as incertezas. Estamos criando toda uma nova "tecnologia conceitual" para lidar com situações que escapam à lógica. A tensão está no ar, mas não é explosiva.

O Livro das Cousas que Acontecem bate uma foto (cheia de personalidade) desse mundo que teme, mas convive com o absurdo. E sua principal virtude é a locação: em vez de usar "o mundo dos escritores, dos poetas e dos pensadores", Pellizzari usa as ruas. Por isso, em vez de reclamações e gemidos intermináveis, temos humor e, principalmente, coragem.