Clipagem


Folha de SP - Ilustrada
9 de novembro de 2002
por Diego Assis

Bullar descreve seu zoológico fantástico

Escritor soteropolitano de 22 anos estréia com livro de contos inspirado em Borges, Cortázar e Cronenberg

No princípio era o céu azul. Um piscar de olhos, elefantes, girafas e leões. Outra olhada, corvos flamejantes, macacos raivosos e ratos de um metro de altura. Em suma: uma vaca chamada Cíntia, uma mãe chamada de vaca.

Este é o mundo de Paulo Bullar, o jovem autor de "Húmus", livro de contos lançado pela editora gaúcha Livros do Mal e que marca a estréia do escritor baiano de 22 anos na dita "literatura séria". "Isso para mim não tem a menor importância. Quero apenas que as pessoas leiam o que escrevo. Se gostarem, ótimo", adianta Bullar, que há tempos vinha experimentando sua prosa no site independente www.kzine.cjb.net.

E não é difícil "gostar" ou, ao menos, sentir qualquer coisa -surpresa, pânico, nojo, prazer?- pela literatura de Bullar. Sua narrativa, segundo escreve, movida a "tabaco com ácido onírico e pó-de-estrela" guia os olhos do leitor por uma viagem ora banal e bucólica, ora fantástica pelo mundo animal. É como assistir ao Discovery Channel. Dirigido pelo David Cronenberg.

Falando baixinho, fascinado, evitando interferir na paisagem, Bullar elege e psicologiza os animais, "nervosos" (macacos), "problemáticos e psicóticos" (ratos), "demoníacos" (cágados) ou de "importância puramente estética" (zebras, girafas e elefantes).

À maneira de Jorge Luis Borges, com seu "Livro dos Seres Imaginários", Bullar promove um exercício de catalogação subjetiva. Se fosse um documentário, diríamos que o calor insuportável dos trópicos é que estaria embaçando as lentes da câmera.

Mas, se por um lado dá-se uma personificação dos animais selvagens, por outro, o autor parece não fazer distinção entre os primeiros e os chamados animais racionais, os seres humanos. "Cíntia", a vaca leiteira, "primeiro mamífero a morrer de uma overdose de erva", parece tão humana quanto o seu proprietário, um agricultor que resolve plantar maconha para sobreviver. Há ainda a mulher, "abominável humana", como classifica Bullar, que, grávida, bota um ovo de lagarta; ou mesmo a veterinária do zoológico, que morre de amores pelo leão recém-chegado, e vice-versa...

Mas é em "A Filha da Vaca" que o ciclo definitivamente se fecha. Não há animais aqui, apenas um garoto, uma garota e uma mãe (fora de cena), que é "uma vaca". "Não tenho intenção de fazer um estudo científico do comportamento humano", afirma Bullar.

Quem o faz, porém, é Noam Chomsky: "A inteligência humana tem seus limites determinados por um esquema inicial (...) da mesma forma que os ratos são incapazes de percorrer labirintos de propriedades numéricas (...) Devemos chamar tais questões de "mistérios pros humanos", assim como algumas questões se colocam como 'mistério pros ratos'".