Clipagem


O Estado de SP
2 de agosto de 2003
Por Haroldo Ceravolo Cereza


O absurdo urbano de Joca Terron

No mundo do escritor e editor (ele faz os livros que têm o selo Ciência do Acidente) Joca Reiners Terron, paquidermes transitam pelas ruas, os bebês podem ter 60 anos, cigarras cantam antes da hora e chimpanzés se hospedam no Hotel Hell (Livros do Mal, 116 págs., R$ 20). Afinal, "o primeiro homem no espaço foi uma cadela russa", como lembra um dos subtítulos da narrativa.

Um mundo fantástico, fantástico e ao mesmo tempo caricato, em que as situações (bilhetes literários de seqüestradores, motoboys sendo laçados por paraplégicos no farol, o Bispo Secreto) e as citações (Ronaldo Bressane, a máquina de pinball de Clarah Averbuck, por exemplo) apontam para o real e para outros escritores-colegas, enquanto o avanço no texto lembra mais um desenho animado para adultos. Ou melhor: um filme do gênero Uma Cilada para Roger Rabbit, em que personagens representados por atores e outros desenhados se relacionam como se tudo fosse muito normal. Tal sensação é reforçada pelos desenhos que ilustram a história, de Félix Reiners, encorpando a relação com um mundo pop e juvenil (como escreve Terron, "nada envelhece mais uma frase do que a palavra juventude"). Há uma diferença importante, contudo, do ponto de vista formal: Joca Terron recusa a história linear, incorporando o caos da cidade e do grafite à estrutura de sua obra.

Nesse sentido, Hotel Hell é bastante coerente com seu projeto de "bestializar" a vida, não para mostrar sua naturalidade, mas para descrever seu absurdo e a falta de lógica no arranjo social. A máquina de assar frangos é tratada como um oráculo e, em determinado momento, surge "o canto do messias assado", na língua do có: "Cócómece a pensar: quantos dizem o que pensam e cócalam o quecó sentem? Cóquóquase todos aquietam e cócólocócam o cócóração de cócoras (...). Macacócós não morrem e frangos são trucidados em verdadeiros holocócócaustos, presos em granjas de cócóncentração."

O Hotel Hell aparece depois de um dos incontáveis narradores, mas talvez o mais importante deles ("um bêbado completo"), pegar um táxi e pedir para ir para o inferno. O motorista, então, responde: "Ah, te deixo no Hotel Hell, conhece?", um hotel "grande como uma cidade". A partir de então, novas cenas evoluem como um sonho, através de associações, em que se misturam os animais mais bisonhos, as drogas mais escatológicas e eficazes e outros delírios, nem sempre associados a bebidas e químicos. Mas o Hotel Hell não é uma metonímia da cidade, é a própria cidade de São Paulo, com seu rio estático, o Tietê, cujas margens é que se movem.

Terron, um dos autores que integram a coletânea Geração 90 - Transgressores, é, como vários outros de seus colegas (Marcelino Freire e Arnaldo Bloch, por exemplo), bastante eficaz no controle das palavras: sabe realizar o que quer escrever, podendo desde fazer graça com a língua do có até reproduzir o suposto linguajar da periferia com verossimilhança.

A alternativa pelo sonho, em Hotel Hell, contudo, demora um tanto para virar pesadelo. Se os personagens não precisavam nunca perceber que são cigarras cantando fora de época, o autor poderia deixar claro que o sabia mais cedo, tirando proveito dessa tensão irônica entre ele e suas criaturas. É uma questão que está no coração desse projeto de Terron, que apostou acertadamente na forma, mas que não procura tocar mais profundamente com as histórias que conta.

Quem, coincidentemente, conseguiu fazê-lo, foi o editor de Terron - Daniel Galera, organizador, com Daniel Pellizzari, da coleção A Tumba do Cânone (não deixa de ser engraçado encontrar epígrafes de Shakespeare e Lewis Caroll e uma citação do poeta romântico alemão Höderlin num livro que leva esse selo). Galera, na semana que passou, autografou, no mesmo dia e lugar que Terron, em São Paulo, seu Até o Dia em Que o Cão Morreu, uma novela mais simples em termos de linguagem, mas, ao mesmo tempo, mais profunda em seus personagens e situações, sem deixar de ser tão contemporânea quanto Hotel Hell.