Clipagem


O Estado de SP
11 de janeiro de 2003
Por Haroldo Ceravolo Cereza


As pequenas crueldades da turma dos Livros do Mal

Jovens gaúchos partilham de um projeto comum, mas não chegam a perder a identidade


Algumas resenhas começam pelo título, outras pela capa. Essa aqui começa analisando o nome da editora: Livros do Mal, entidade que representa um grupo de jovens escritores gaúchos - entre os quais os contistas Paulo Bullar, autor de Húmus, e Daniel Pellizzari, de O Livro das Cousas Que Acontecem.

O nome da editora aponta para um projeto comum e coloca uma pergunta: será que há pontos de contato suficientes para unificar esses escritores, sem que eles percam a identidade?

O que primeiro chama a atenção na leitura das duas obras é a proximidade.

Comecemos por descrever O Livro das Cousas que Acontecem, de Pellizzari: nele, estão reunidas histórias fantásticas e surrealistas, que adotam uma narrativa de crônica, aproximando o absurdo do jornalístico, mais até do que da literatura.

A história que abre o livro é a de um homem que percebe, ao amanhecer, que tem um buraco na testa, de onde saem sons que o confundem. A saída é pegar uma rolha e tapar o furo. O homem, então, volta a seu cotidiano e vai ao trabalho, onde ninguém nem percebe a cortiça que ocupa uma área equivalente a uma moeda de dez centavos de seu rosto. Tudo bem, até a manhã seguinte, quando o mesmo homem percebe que tem um furo no peito. E ponto.

O miniconto Aquário, de Húmus, poderia muito bem estar no volume de Pellizzari. Mas não é o único: o mesmo ocorre com Abominável Humano, em que uma mulher, em vez de parir uma criança, bota um ovo. Ou seja, uma certa aberração ou crueldade, que sugerem o nome da editora e os dois títulos das reuniões de contos, está bem representada nas duas obras. Em comum, elas recorrem a alegorias bizarras e a personificações - ambos atribuem a animais e monstros características humanas, particulares e sociais.

Mas a identidade de cada um não chega a ser totalmente prejudicada pelas semelhanças temáticas. Húmus, livro de estréia, é um tanto disperso e, frase a frase, o que inicialmente parece ousadia vira simples confusão - algo que não acontece com O Livro das Cousas. Pellizzari parece mais maduro, e de fato é: seu Ovelhas Que Voam Se Perdem no Céu foi bem recebido pela crítica.

Apesar de Pellizzari dominar bem suas histórias e parecer ter sempre um destino quando inicia suas histórias, há um tom excessivamente descritivo na obra. Sim, coisas fantásticas acontecem (e Pellizzari faz questão de colocar juntos, muito bem, num esquete teatral, Kafka, Cortázar e Beckett se queixando de Borges), mas como se reage a elas - pessoal e coletivamente? As dimensões que superam a crônica é que fizeram a glória desses autores, que não se contentaram em simplesmente registrar o fantástico mundo do absurdo, mas tiveram a coragem de superá-lo.