Clipagem


Revista Cult
Março de 2002
por Renata de Albuquerque


Transposições

Nos anos 70, havia os mimeógrafos. E, por meio deles, nasciam os escritos e escritores que, tempos depois, seriam conhecidos como "marginais" na literatura brasileira. Os anos 90 vieram, redescobrindo os "malditos", os "marginais" e inspirando novos escritores. Estes novos autores têm pontos de convergência importantes que os unem uns aos outros. Unem-se em comunidades, listas de discussões e chats, criam páginas na Internet para mostrar sua literatura. A Internet foi, para os anos 90, o que o mimeógrafo foi para os 70. Ou mais. O alcance dessa tecnologia, e o acesso cada vez mais simples a ela, aumenta as chances de um escritor, ilustre desconhecido, tornar-se um pequeno sucesso nos círculos de entendidos ou interessados em literatura. No boca-a-boca (ou de link em link) faz-se a fama de um novo e jovem escritor; um talento promissor ou apenas alguém que traduza o presente. Os endereços literários da Internet proliferam-se e esses escritores surgem.

Não que estar na Internet seja garantia de qualidade. Há muito joio na rede. Mas há também boas iniciativas. Foi nesse ambiente virtual que Daniel Pellizzari (Mojo), Guilherme Pilla e Daniel Galera juntaram-se e ficaram conhecidos. Colunistas do Cardoso Online (COL), um dos mais interessantes e-zines de literatura da www, os escritores Galera e Pellizzari mostram uma farta produção em páginas de Internet, enquanto Pilla faz ilustrações.

O COL acabou em 2001, enquanto os três iniciavam uma empreitada ainda mais ousada: a criação de Livros do Mal, um projeto editorial independente, que lançou, no final de 2001, seus dois primeiros títulos. Dentes guardados (Galera) e Ovelhas que voam se perdem no céu (Pellizzari) são coletâneas de contos ilustradas, ambas, por Pilla. Decidiram colocar no papel o que antes apenas a tela dos computadores mostrava.

Jovens, na faixa dos 20 e tantos anos, Galera e Pellizzari condensam em sua prosa influências acentuadas e características da escrita via Internet. Contos curtíssimos, rápidos, essencialmente coloquiais. O que Pellizzari e Galera querem é retratar fragmentos de um cotidiano, ficcional, fantástico ou real. Ambos captam as imagens e as idéias de um grupo específico: jovens urbanos contemporâneos. Seus personagens quase sempre são ligados ao jornalismo, à comunicação, à publicidade. Personagens que são o ponto forte dos livros e, de alguma maneira, vivem uma vida de conflitos típicos de nossa época, numa tentativa de identificação com o leitor ou mesmo de retratar a própria realidade que cerca os autores. Vida notívaga, casamentos informais, a procura de saídas para dilemas existenciais: esse é o universo por onde vagam os personagens de Pellizzari e Galera.

Em Ovelhas que voam se perdem no céu, o tom da narrativa é mais agressivo e urgente. A tensão se forma rapidamente e desfaz-se apenas porque o conto acaba, súbito, sem dar ao leitor a chance de saber qual a "moral da história", como, por exemplo, em "Teia", "As boas maneiras do acaso" e "Os calos de sísifo". São narrativas amorais, histórias que não acabam, apenas param de ser contadas. Galera também utiliza desse expediente, um dos pontos de convergência entre os dois autores.

"Um hamster", de Pellizzari, é um dos melhores exemplos de que o inusitado pode ser uma boa alternativa para dar um novo fôlego a histórias que falam de velhas inquietações humanas. Neste texto, o leitor se depara com a angústia do abandono em uma história protagonizada por um roedor. Sem resposta no final, ao leitor só resta continuar a refletir. Mas talvez o melhor momento do livro seja mesmo o conto "Felicidade talvez", um exercício quase cinematográfico, no qual três cenas diferentes apontam para um horizonte distante, mas possível. É nesse momento que o leitor percebe que há todo um universo particular a ser descortinado neste Ovelhas..., mais amplo do que aquele que fora apenas insinuado até agora. O inesperado, expediente mais que comum na prosa, é usado aqui associado ao texto curto, por vezes curtíssimo, exercendo sobre o leitor um impacto maior, como em "Gravidade". Nele, a rotina diária é invadida pelo surreal. Um universo quase kafkiano, mas que não tem a capacidade de abalar a vida comum dos personagens, mostrando que talvez pouca coisa hoje em dia possa ainda ser chocante aos olhos humanos.

Uma surpresa em potencial se esconde em cada conto. Tudo parece casual, mas é cuidadoso e, ao mesmo tempo, ágil. Um universo que fica suspenso, como que a esperar que o leitor reinterprete as histórias e desvende seus significados particulares. É o caso do melancólico "Jardim de infância", no qual uma criança passa por uma experiência de desilusão (amadurecimento?), a primeira de muitas, como o autor deixa entrever para além da fantasia de abelha que ela veste: um ego ferido. Neste conto, Pellizzari coloca, de maneira concreta, elementos que mais tarde talvez farão parte da vida de sua personagem, mas de forma abstrata. "Ponto de fuga", que fecha o volume, é quase uma síntese de tudo o que Pellizzari mostra nesta sua estréia. Curtíssimo, carrega consigo alguma surpresa e estranhamento, levando o leitor ao encontro do inusitado.

Em Dentes guardados, o grande destaque são as histórias de amor. Menos agressivo que Pellizzari, Galera traz personagens mais confessionais, nos quais o mais interessante é a simplicidade. Maneiras "modernas" de contar histórias já conhecidas e de falar sobre sentimentos humanos universais, partindo de peculiaridades dos personagens, ou de situações quase banais.

No livro de Galera, são os detalhes que fazem o leitor despertar a curiosidade e continuar a leitura, fácil, fluida, rápida. Mas se esse leitor, desatento, passa a desconsiderar os detalhes, o autor chama-o de volta, como no ótimo "Triângulo", e reconquista sua atenção para a riqueza de detalhes que se pode encontrar ali. O tema da intimidade, que perpassa todas as histórias, é tratado especialmente em um conto homônimo. Parte de um fato cotidiano para desencadear uma análise de relacionamentos nos quais talvez haja espaço para o amor romântico.

Aliás, esta parece mesmo ser a pretensão de Daniel Galera: situar no "mundo contemporâneo" que cria para seus personagens, também "modernos", a possibilidade (e a esperança) da existência do amor "tradicional". É flagrante, durante todo o tempo e em quase todas as histórias, entretanto, a inabilidade dos personagens em conciliar sua busca, a necessidade de "amor romântico" com estes atribulados "tempos modernos".

As buscas humanas, existenciais, amorosas, profissionais e afetivas fazem com que o leitor tenha sempre à mão personagens que se escondem da fragilidade usando dos mais variados artifícios. Mas Galera sempre deflagra a fragilidade, sempre recoloca-os em sua rota vital de questionar e escolher caminhos. Como acontece, de maneira concreta, em "Será numa quinta-feira".

O inusitado garante seu lugar na prosa de Galera, tendo por mote as histórias de relacionamentos. "A escrava branca", um dos mais longos textos do volume, é um dos mais significativos exemplos desse expediente do qual o autor se utiliza. "Todas as rosas do balde", em que uma menina aprende a vender flores de uma maneira pouco convencional, mostra dois lados perversos de exploração infantil. A criança submete-se a isso para que possa se sustentar entre os dois extremos; para que um compense o outro. O conto chega à beira da crueldade e da pedofilia, mas há ainda nele uma sutileza que pontua quase todo o livro.

Tudo para que mais uma vez se saiba que buscar respostas talvez não seja mesmo o mais importante da vida.

Renata de Albuquerque
jornalista, colabora com o site de literatura capitu.com, entre outras publicações