Clipagem


Publicado no site Capitu
Outubro de 2002
por Renata de Albuquerque

Escrevendo uma nova história

Criar com palavras um mundo novo e peculiar, fazer da associação de frases e idéias, literatura. Não há quem discorde que os escritores usam uma ferramenta simples - a língua - para fazer algo raro: arte. Eles usam algo que está (ou deveria estar) ao alcance de todos: a palavra escrita. Até mesmo suas ferramentas de trabalho são portáteis: lápis, caneta e papel qualquer pessoa pode ter, carregar consigo e manter a mão. Para alguns, os escritores também carregam consigo o estereótipo de serem ensimesmados, misteriosos, "diferentes". Há quem pense em literatura como apenas mais uma matéria que se aprende na escola, como uma arte distante, feita por pessoas "especiais". Mas a literatura não é feita apenas de clássicos, como Machado de Assis, Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges ou Clarice Lispector.

A literatura é feita também por gente que vive nossa época, e que com talento e vontade retrata nosso tempo, garantindo o futuro dos livros a partir do presente. Na maior parte das vezes, os novos escritores, responsáveis por manter viva a literatura, são "gente como a gente", jovens, donas-de-casa, médicos, engenheiros, jornalistas, professores, advogados, psicólogos, historiadores que, em comum, têm o desejo e a necessidade de expressar suas idéias em forma de arte.

A maioria desses escritores brasileiros trabalha em outras profissões e faz literatura em "horas vagas" levadas muito a sério. São noites de pouco sono, finais de semana passados em bibliotecas e horas a menos vendo TV. Mas em nada tais esforços lembram sacrifícios. Eles fazem isso com prazer.

Essa "nova literatura" se constrói sem alarde, em grupos espalhados pelo Brasil inteiro, que aos poucos renovam o que um dia será ensinado nos livros escolares e, antes, o que será posto nas prateleiras das livrarias.

Ler para escrever

Para que uma boa idéia vire um bom texto, é preciso mais que talento e inspiração. É preciso muito treino. Afinal, quanto mais se escreve, melhor se escreve. Mas o que realmente define a qualidade de um escritor é seu conhecimento como leitor. Gabriel Perissé, coordenador do Projeto Mosaico e da Escola de Escritores, acredita nisso. Há cerca de seis anos ele fundou uma ONG destinada a ajudar escritores a melhorar seu texto e seu estilo, incentivando a publicação dos trabalhos e promovendo a profissionalização do escritor. "A Escola dedica-se a formar escritores e leitores, porque todo escritor tem de ser um grande leitor" , defende Perissé.

Nas oficinas promovidas pela Escola, os participantes lêem seus textos uns para os outros, e discutem um a um, sugerindo melhorias, mudanças e fazendo críticas. "A função é quase 'desiludir', mostrando a realidade da vida literária", diz ele, referindo-se a dificuldades como a de publicar, uma das barreiras mais comuns para escritores inéditos ou pouco conhecidos. Uma das ações mais recentes da ONG é a campanha Plante um Livro, lançada em maio. A campanha procura buscar parcerias da iniciativa privada para a publicação de livros e para a divulgação da atividade literária, com palestras em instituições e empresas.

O trabalho das oficinas já deu frutos: antologias organizadas pela Escola de Escritores e textos espalhados por revistas e sites da internet.

A internet, aliás, tem se mostrado uma verdadeira aliada dos novos escritores. Basta navegar por alguns endereços e perceber a profusão de iniciativas literárias da rede. Afinal, ali é muito mais barato publicar do que em livro, e o público é maior e mais diversificado.

Inéditos e publicados

Mas só a internet não basta. O maior sonho de todo escritor é mesmo ver sua obra publicada em livro. Foi por isso que um pequeno grupo de amigos de Porto Alegre criou a Livros do Mal, uma editora independente que tem como proposta publicar novos talentos literários. A trajetória do grupo começou na rede, na página do Cardosonline, um site de literatura que acabou em 2001 e continua, agora, em papel. Daniel Pellizzari (Mojo), Guilherme Pilla e Daniel Galera encabeçam o projeto. Os dois primeiros lançamentos da editora foram os livros Dentes guardados (Galera) e Ovelhas que voam se perdem no céu (Pellizzari), coletâneas de contos ilustradas, ambas, por Pilla.

Mas porque, afinal, optar pelo formato independente? "Queríamos publicar o livro do nosso jeito: preparar os editoriais, fazer a capa, fazer a editoração, escolher o formato, divulgar, colocar pra vender nas nossas livrarias prediletas. Gostamos de todo o processo de edição, queríamos dominar isso, criar não apenas o texto mas também o objeto, o livro. Publicamos independente por vontade e por prazer", confessa Galera.

Para eles, a já quase clichê crise no mercado editorial não é desculpa para não fazer livros. "Se tu tens condições de fazer algo em que acredita da maneira que acredita ser a ideal, por que buscar guarida em estruturas além do teu controle, a maioria delas sustentada em vícios que não condizem com teu pensamento?", pergunta Pellizzari, em uma resposta corajosa.

Fazer poético

Talvez fosse nisso que pensavam os amigos que há doze anos reuniram-se em São Paulo para formar a semente do que é hoje o Cálamo, grupo que tem como objetivo fazer - e discutir - poesia. Os integrantes do Cálamo têm uma produção regular e farta, mantendo a poesia viva e atual. Além das antologias publicadas, muitos integrantes também já lançaram livros individualmente. O nome Cálamo foi inspirado em uma espécie de junco do qual são feitos a pena (para escrever) e a flauta, reforçando a idéia do fazer artístico que move o grupo. "A gente já fez vários recitais mas isso é um complemento do trabalho", diz Chantal Castelli, uma das fundadoras do grupo. A tônica do Cálamo é mesmo a produção poética.

Durante as reuniões semanais, que duram mais de três cada, eles escrevem e apuram sua literatura a partir de uma proposta única para a produção dos textos: temas ou reflexões muitas vezes baseados em autores específicos. "A idéia é criar a partir do estímulo que o assunto nos dá", explica Chantal. A cada semana, um integrante coordena as reuniões, fazendo com que não haja uma "liderança" na condução dos rumos literários do grupo. A troca de informações promove uma interlocução importante, que enriquece e amadurece os textos. "A crítica sobre nossa própria poética, a comparação que existe, promove um crescimento (qualitativo) na produção", acredita Joacir Bezerra Lima, outro integrante do grupo. Por isso, nas reuniões há também análises dos textos produzidos, avaliados como obra fechada, no caso de publicação, que enriquecem ainda mais o resultado.

Assim, aos poucos, uma nova literatura surge, feita por escritores jovens e talentosos que vão mudando os rumos da literatura nacional.

"Não posso afirmar que estamos desenhando o futuro da literatura brasileira. O que posso dizer é que queremos catalisar o novo e o original, ao invés de apenas alimentar modelos estéticos que já estão aí", afirma Daniel Galera. Para Joacir Bezerra, essa é uma oportunidade única. "Somos poetas novos, então a gente ainda tem a chance de arriscar".

Que continuem arriscando, e escrevendo uma nova história para a literatura brasileira.