Clipagem


Publicado no site Capitu
Outubro de 2002
por Renata de Albuquerque

Verborragia libertária

Daniel Pellizzari (Mojo) já percorreu o Brasil de Norte a Sul, literalmente, mas foi na literatura que descobriu sua verdadeira seara. Ele escolhe muito bem as palavras para poder compor seus curtos, concisos e cortantes contos, mas nesta entrevista ele solta o verbo e fala do fazer literário com paixão e verdade. Nesta entrevista, feita por e-mail, ele fala de suas influências literárias, do desafio de manter uma editora como Livros do Mal, de livros como objetos e da internet como veículo, além de muitas outras coisas.

Capitu: Como e quando surgiu a vontade (e mais, a consciência) de tornar-se escritor?
Mojo: Não tenho lembrança de um momento definidor neste sentido. Comecei a escrever muito cedo e isso sempre me pareceu natural.

C: Qual a importância dessa atividade em sua vida?
M: Absoluta. É isso o que eu faço. O resto são detalhes e acidentes de percurso.

C: Qual obra, autor ou fato (um professor, por exemplo) o despertou para a literatura?
M: A influência inicial foi dos meus pais e de uma tia. Meus pais porque sempre me rodearam de livros dos mais diversos tipos. Tive a sorte aleatória de aparecer lendo uma enciclopédia quando tinha quatro anos. Acho que de tanto minha mãe ler histórias e enciclopédias para mim, fui acompanhando as letras e acabei aprendendo a ler. Logo depois comecei a criar minhas próprias histórias. Minha tia: ela cuidava de mim quando meus pais estavam fora. Para eu dormir e me entreter, contava histórias que na verdade eram adaptações de contos de Edgar Allan Poe, Nathanael Hawthorne e esse povo simpático. Peguei gosto pela coisa rapidinho, com tanto estímulo. Depois, segui adiante sozinho, explorando e lendo tudo o que caía nas minhas mãos - nem sempre ficção, e na verdade eu não fazia muita diferença entre uma coisa e outra quando era menor.

C: Como se deu essa entrada para o mundo literário (primeiros registros literários)?
M: Quando eu era criança escrevia 'livros' e revistas de histórias em quadrinhos. O primeiro foi aos cinco anos, e se chamava (quanta imaginação) 'Contos de Daniel'. Foi seguido de um intitulado "Fábulas de Daniel', que infelizmente eu perdi (o 'Contos' eu ainda guardo muito bem). Escrevi uns poeminhas horríveis nos anos seguintes. Aos dez anos tentei escrever um romance de ficção científica chamado "Solaris", que parou na metade quando perdi os originais na mudança de Manaus para Porto Alegre. Depois disso fui escrevendo aleatória e esporadicamente. Aos quinze anos escrevi uma novelinha bastante influenciada por Tolkien (um dos meus ídolos infanto-juvenis), chamada "O Filósofo do Fogo", e comecei várias outras, nunca terminadas - todas com temática de fantasia, ficção e horror. Tenho uma novelinha adolescente de vampiros que é uma vergonha, e um livro de contos meio Lovecraft/Clive Barker chamado "O Livro dos Lamentos". Tudo permanentemente engavetado, claro. Aos dezesseis fui classificado em um concurso chamado Prêmio Jovem Escritor e estreei em livro impresso com uma crônica. Em 1996 cursei a oficina literária da PUCRS, ministrada por Luiz Antonio de Assis Brasil, que foi decisiva para que eu tomasse mais consciência dos processos de criação da literatura e ensaiasse os primeiros passos na busca de minha voz própria. No mesmo ano comecei a publicar ficção na internet e a fazer experiências, como "Quatro Gargantas Cortadas" - um folhetim psicodélico que nunca terminei por motivos que não consigo lembrar. Depois veio o COL, que aumentou e sedimentou uma base fiel de leitores, e me deu chance para experimentar trolhocentas formas narrativas. Foi legal.

C: Desde qual idade começou a escrever ficção (conscientemente, sem a obrigação das redações escolares)? Como foi esse início?
M: Foi aos cinco anos, escrevendo livros em papel de ofício grampeado [ilustrado por meu irmão].

C: Quais autores e obras você considera fundamentais para sua formação e atuação como escritor hoje?
M: Isso é muito difícil de responder. Eu comecei adorando Edgar Allan Poe, meu primeiro ídolo literário [graças à minha tia]. Também gostava muito de fábulas, mitologia e folclore, além de parábolas e literatura religiosa [começando pelos profetas bíblicos]. Tolkien, Lovecraft e Lautréamont dominaram minha adolescência. Lá pelos dezesseis anos comecei também a ler os beats e a reler coisas que eu tinha tentado devorar quando era criança mas [mesmo que jurasse o contrário] não tinha entendido muito bem: os nomes principais dessa fase são Kafka, Dostoiévski e Caio Fernando Abreu. Aí começou a festa da leitura infinita, e fico até sem graça de encher linhas com nomes de gente [morta, em sua maioria]. Uma influência legal foi Joyce. Quando eu era pirralho li sobre 'Ulysses' em algum lugar e fiquei com a idéia de que era um livro mágico e extremamente complexo, que exigia anos de dedicação do leitor. Isso me fascinou tanto que decidi dedicar minha vida a acumular informação para poder ler tal livro fantástico algum dia. Foi engraçado e me deu alento para devorar enciclopédias, copiando as partes mais divertidas em pilhas de cadernos. Aos 25, consegui enfrentar a criança e agora sou um homem quase feliz. Nota: não citei meus atuais autores prediletos. Não todos.

C: Quais são os temas mais férteis para você? Quais inquietações o levam à ficção? O que pretende retratar com sua obra? Quais as intenções que o levam à escrever: retratar um universo particular ou levar o leitor a refletir a respeito de seus personagens e do mundo que é mostrado nos livros?
M: Eu devo sofrer de uma espécie de atrofia do senso de estranhamento, porque as coisas mais corriqueiras me soam intensamente bizarras na maioria dos momentos. Por outro lado, tenho um fascínio infantil pelo incomum e pelo bizarro, que [talvez pela mesma atrofia] me transmitem um grande senso de familiaridade. Eu entendo o mundo mais pela exceção do que pela regra, até porque enxergo a exceção como a chave oculta de todas as regras - seja lá o que eu queira dizer com isso. Essa é uma das minhas forças motrizes na literatura. Tentar ver o bizarro no casual e o familiar no fantástico, e entender o mundo [e, oh, toquem as trombetas, a Verdade] através de fragmentos aparentemente aleatórios e/ou absurdos. Acredito que a compreensão do todo pode [e deve] vir através da reflexão sobre o particular. Talvez eu não devesse ter lido tantos profetas, é verdade. Agora é tarde. O 'Ovelhas' tem alguns temas recorrentes [a meu ver]: dificuldades de comunicação, inadequação ao meio, ausência aparente de sentido no mundo, invasão do global pelo particular, perda de expectativas e, principalmente, as epifanias. Não sei se vou continuar falando disso o tempo todo. O "Ovelhas" é um livro bastante heterogêneo e irregular, até por ser uma antologia de textos escritos em um intervalo bastante longo de tempo [1995-2001]. Agora mesmo estou escrevendo dois livros bem diferentes. Um deles lida bastante com essa estética/ética do absurdo, em histórias/contos/parábolas/narrativas curtas e secas, sem grande [ou sem nenhuma] interferência do narrador. O outro é uma narrativa longa e linear, que normalmente rende homenagem ao romance picaresco espanhol do século XVII, mas com um conteúdo e linguagem totalmente contemporâneos. Esse eu estou escrevendo por diversos motivos: para me divertir, para exercitar minha fascinação por personagens escrotos/amorais, para mostrar que eu escrevo textos curtos porque prefiro e não porque é só o que sei fazer, para dar voz a uma camada subterrânea da sociedade, para compartilhar minha visão sobre a derrocada ética, moral e existencial da civilização que nasceu com o Renascimento, para queimar meu filme com a crítica [o que será inevitável, mas dane-se] e bem, porque sim.

C: Porque a opção pelo conto, e não pela poesia ou pelo romance? Isso tem a ver com o meio (internet) em que essa literatura foi primeiramente expressa?
M: Não tenho talento para ser poeta, infelizmente. O que me serve de consolo é que quase ninguém tem. É por isso que não ouso escrever poemas. O que me desespera é que pouca gente tem essa consciência. Tadinha da poesia. O romance clássico, aquela estrutura tipicamente burguesa de narrativa, não me interessa. Acho uma forma literária totalmente falida, que não tem mais nada de novo a dizer - desde o modernismo, e lá se vão quase cem anos. Leio pouquíssimos romances. Talvez já tenha lido todos que interessam. Os que ainda me surpreendem sempre têm alguma novidade formal que o afasta do esquema 'romanção', que me enche o saco facilmente. Acho meio bobo. Gosto de novelas, podem ser bem divertidas de se trabalhar - por isso estou escrevendo uma. São bem mais fáceis de escrever do que contos, também. Folhetins também são interessantes, se o sujeito quiser brincar de satirista. Outra coisa que gosto bastante são formas híbridas de narrativa. Isso me fascina. Considero o conto a mais perfeita forma narrativa. Um bom conto diz tanto quanto uma boa novela, e certamente muito mais do que um bom romance. É difícil de escrever e exige esforço do leitor para ser recebido decentemente. Quando é bem executado, tem diversos níveis de leitura. Não precisa ser explicitamente narrativo ou trazer conflitos aparentes. Poxa, tudo isso é ótimo. Além de tudo, é por excelência a melhor maneira de retratar a vida nesta decadência total que é a sociedade ocidental contemporânea. Fragmentos: sem começo nem fim aparente, contendo o mundo todo em seus caquinhos. A internet não influenciou em quase nada essa escolha, pelo menos no meu caso. O "Ovelhas", por exemplo. São 19 contos. Onze deles não foram escritos para o COL, nem para um de meus sites, nem especificamente para a internet. É uma questão de preferência, mesmo.

C: Ao começar a "publicar" na internet, havia uma preocupação estética e formal (um planejamento prévio, por exemplo) de adequar a narrativa a esse meio, ou tal adequação deu-se de maneira natural?
M: Sim e não. Ou, para ser mais específico: não e sim. Os contos do "Ovelhas" que 'nasceram' na [e para a] internet não fazem uso algum de especificidades dessa mídia - por isso estão no livro. A internet, neste caso, não é forma, é apenas meio. São trabalhos classificados como 'hardcopy', ou seja, podem ser impressos sem perder nada de sua intenção original. Outros textos (no COL ou fora dele) eu escrevi com a mentalidade 'softcopy', pensando 'isso vai ser lido em uma tela e só em uma tela'. Recursos hipertextuais [se bem que o Cortázar, hmm] e de multimídia, por exemplo, colaboram para dar esse caráter ao texto. Mas não é algo que eu faça com freqüência, apesar de gostar. Tenho preguiça e pouco tempo livre.

C: A opção pela internet foi uma forma de "testar" a produção literária, para só depois levá-la ao papel ou foi um meio em si, definitivo para abrigar aquela produção específica? No início você pensava em levar essa obra para fora da internet?
M: Sempre. Eu nunca pensei em publicar só na internet, e olha que comecei a fazer isso em 1995, quando o uso comercial da rede estava babando e sujando a fralda neste país. A internet, para mim, sempre foi vista como um meio. Meio de divulgação, de experimentação, de formação de público, de desmistificação da literatura. Existem trabalhos específicos do meio, como eu citei na resposta anterior, mas pelo menos no meu trabalho eles não são o foco principal.

C: Fale sobre sua trajetória como escritor desde o início até a chegada no Cardoso Online. Como se deu esse caminho?
M: Escrevia desde criança, publiquei em algumas antologias [Prêmio Jovem Escritor, Contos de Oficina] e revistas/jornais. Comecei a usar a internet para dar mais alcance ao que eu escrevia. Alguns anos depois, já com um público razoável, conheci o Pilla e ele me convidou para o COL, que estava começando e me pareceu uma idéia ótima. Eu tinha feito algo parecido em 95, por sinal, mas desisti no primeiro número por pura falta de leitores. Nem mail acentuado eu podia mandar naquela época, ora bolas. O '(putaria.)' [meu mailwebzine de nova literatura brasileira] também foi uma experiência bem legal, mesmo durando pouco.

C: E porque surgiu a idéia da criação de Livros do Mal? A internet já não era o bastante?
M: Não. O livro, o códice, essa coisinha adorável, ainda é o meio por excelência da expressão literária. O resto é experimentação ou precariedade. Eu sempre quis ter uma editora. Sempre quis ter livros. Eu adoro livros, tenho fetiche pelos danados. Gosto deles atravancando minha casa, caindo em cascatas das estantes, subindo em torres por todo lado, invadindo meu banheiro e minha cozinha. E olha que eu sou um sujeito extremamente nerd, que também adora computadores. Um de meus passatempos prediletos é instalar e configurar sistemas operacionais alternativos, só pelo prazer míope que isso me dá. Ou seja, não é uma questão de resistência à tecnologia, mas de cada coisa a seu tempo e em seu lugar. É como cybersex, poxa. Pode até ser divertido para algumas pessoas, pode até aproximar duas pessoas, mas se ficar só no espaço virtual, nesse éter de fibras óticas, não vai bastar. É um prelúdio interessante, e só. O Pinto [como nós nos referimos à editora, vide nosso mascote] nasceu quando achamos que já era a hora de lançar livros. Já existia um público razoável para nossos textos, já tinhamos um trabalho razoável que não nos daria muita vergonha de publicar, o COL estava chegando ao fim do seu ciclo. Era o momento: então fizemos.

C: Vocês acreditam que há alguma relação entre esse movimento (da internet para o papel) e o que aconteceu com a geração mimeógrafo, que posteriormente passou a publicar livros? Quais são os pontos de convergência e o que difere essas duas realidades separadas por quase trinta anos?
M: Sabe, eu não vejo muito isso de 'da internet para o papel'. Eu já publicava em papel antes de publicar na internet. Ela foi só um meio do qual me apropriei para aumentar o alcance de meu trabalho e me ajudar a ter uma base de leitores antes de arriscar gastar dinheiro em um livro impresso. É muito mais fácil e inteligente lançar um primeiro livro já sendo conhecido em alguns círculos do que se esbaforir todo e largar a criança no mundo sendo um completo desconhecido. Fica muito difícil, neste caso. O trabalho precisa ser mais gradual, mais paciente, e para isso a internet se presta como nenhum outro meio - e é mais barata do que todos eles. Acho que a mesma coisa vale para o Galera e o Benvenutti, que publicavam em fanzines de papel antes de aparecerem na internet. Já essa relação entre os malditos do mimeógrafo e os 'internet-papel' também me parece uma analogia falsa, apesar de ter uma lógica que parece óbvia. Mas fiquei com preguiça de ir adiante neste assunto, me desculpe. De repente é porque eu me vejo apenas como escritor, e não como participante de um movimento ou algo assim. Simplesmente não consigo - e chego até a ficar com dor no pescoço se penso muito no assunto.

C: Vocês acreditam que fazem parte de uma geração de escritores que está desenhando o futuro da literatura brasileira em diversos pontos do país ou pensam que sua literatura é uma literatura deste momento, que ainda não tem pretensões futuras?
M: Sempre vou estar trabalhando pelo presente da literatura brasileira, porque é nele que eu vivo. Depois que eu não estiver mais vivo, ele vira futuro e aí não vou ter a mínima idéia do que minha literatura vai estar fazendo. Espero ser capaz de produzir algumas coisas que durem mais do que minha carcaça, porque então finalmente eu teria algo em comum com os autores que mais admiro.

C: De que forma o fazer literário interfere ou muda sua maneira de ver e interpretar o mundo?
M: O fazer literário é minha maneira de ver e interpretar o mundo, posta em palavras. É um processo interdependente.

C: Porque a opção por uma publicação independente?
M:Porque somos maníacos por controle, não gostamos de fazer concessões a ninguém além de nossas consciêncas [ou, vá lá, ao Pinto, que é nossa consciência coletiva] e temos admiração por pessoas que realizam trabalhos autorais. E porque é possível, claro. Mesmo que tenham nos dito o contrário mil vezes, o que só serviu para nos atiçar. Se tu tens condições de fazer algo em que acredita da maneira que acredita ser a ideal, por que diabos buscar guarida em estruturas além do teu controle, a maioria delas sustentada em vícios que não condizem com teu pensamento? Talvez para ganhar um pouco mais de dinheiro e pagar as contas no fim do mês sem ter que caçar moedinha no fundo de gavetas cheias de papéis rabiscados. Mas não se ganha dinheiro com literatura em quase nenhum lugar do mundo, muito menos no Brasil. Ou seja, não existe desculpa para fazer de outro jeito.

C: Isso reflete a precariedade do mercado editorial no país, que não dá conta de abrigar toda a produção literária? Será possível mudar essa situação?
M: Nós também fazemos parte do mercado editorial, de uma maneira ou de outra. Que muitos Pintos pipoquem daqui para a frente. Seria lindo. É só o pessoal parar de chorar que ninguém lhes dá atenção e cavar seu próprio espaço de acordo com suas próprias regras.

C: Em sua opinião, é possível sobreviver de literatura em um país como o Brasil?
M: Depende da literatura que tu faz. No meu caso, não.

C: Se não, é frustrante para o escritor ter de trabalhar em uma outra atividade profissional e deixar a literatura para "as horas vagas"?
M: Para usar uma palavra delicada, é uma bosta. Mas o quê vou fazer, ficar chorando? Não dá. Escrevo, edito, traduzo e sigo adiante, enquanto mais de um terço do meu tempo diário é concedido em troca das parcas cifras que (mal) me alimentam, dão teto e compram livros e hardware antigo.

C: Como você concilia essas atividades?
M: Dormindo pouco.