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Publicado no site Capitu
Outubro de 2002
por Renata de Albuquerque

Fazer para acontecer

Daniel Galera, um dos idealizadores da editora independente Livros do Mal, fala nesta entrevista para Capitu de sua experiência como escritor, de suas opiniões sobre literatura e o fazer literário e da importância de tomar atitudes práticas para que a literatura seja uma atividade concreta, não apenas um desejo do escritor. Acompanhe:

Capitu: Como e quando surgiu a vontade (e mais, a consciência) de tornar-se escritor?
Daniel Galera: No meu caso, foi lá pelos 16 anos (ou seja, 1995, 1996), época em que comecei a ler com mais intensidade. Descobri o gosto pela escrita aos poucos, em redações de colégio. De qualquer forma, lia muito desde a infância, aprendi a ler sozinho aos 4 anos e desde então devorei literatura juvenil, enciclopédias, quadrinhos, romances adultos que mal entendia. O impulso da escrita vem da leitura.

C: Qual a importância dessa atividade em sua vida?
DG: Escrever é o que eu gosto de fazer. É a maneira com que me sinto mais seguro em me expressar, em traduzir minha experiência do mundo e devolver essa experiência ao mundo na forma de arte. Se isso não é importante, nada mais é.

C: Qual obra, autor ou fato o despertou para a literatura?
DG: A leitura e análise do romance "O estangeiro", do Albert Camus, na aula de filosofia do meu colégio durante o 2o grau, aumentou muito meu fascínio pela literatura. Antes daquilo, eu não pensava que um texto literário pudesse ter tantas implicações profundas, tanta complexidade e beleza. Depois daquilo, a idéia de ser escritor foi se formando aos poucos em mim.

C: Como se deu essa entrada para o mundo literário (primeiros registros literários)?
DG: Comecei a escrever no final da adolescência. Eram textos ruins, mas eu estava tentando. Quando comecei a usar a internet, lá por 1997, a possibilidade de divulgar meus textos para um público grande me fez praticar a escrita de forma mais regular. Publiquei alguns textos em sites, e depois criei meus próprios sites e participei de fanzines online. Meus primeiros registros válidos foram em meios digitais.

C: Desde qual idade começou a escrever ficção (conscientemente, sem a obrigação das redações escolares)? Como foi esse início?
DG: Foi lá pelos 16, 17 anos. Editei e participei de diversos fanzines, tanto impressos (como o "Bucéfalo" e o "Benzine") quanto digitais. Na internet, editei durante 3 anos (de 1997 a 2000) uma revista literária online chamada Proa da Palavra, cuja proposta era publicar textos de autores estreantes. Essa revista me colocou em contato com a produção de centenas de outros autores que divulgavam seus textos pela internet. De 1998 a 2001, participei como colunista fixo do fanzine digital Cardosonline, onde publiquei mais de uma centena de textos, entre crônicas, egotrips, contos, resenhas e artigos. Essa regularidade e o contato direto com os leitores do fanzine foram importantes pra minha formação como escritor. Em 1998, tive um conto publicado numa antologia pela editora Blocos, do Rio de Janeiro. E em 1999 fui aluno da oficina literária do Luiz Antônio de Assis Brasil, na PUC-RS, que me ajudou muito a compreender o processo de criação literária. Dessa oficina saiu uma coletânea, "Contos de Oficina 24", que tem 4 contos meus.

C: Quais autores e obras você considera fundamentais para sua formação e atuação como escritor hoje?
DG: Um dos autores que mais me inspirou foi Anton Tchekov, os contos dele me impressionavam muito pela capacidade de extrair algo sublime e indizível de situações aparentemente banais. Outros autores que me marcaram foram Albert Camus, Luis-Ferdinand Céline, Kafka, Georges Bataille e Ian McEwan. Dos brasileiros, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Sérgio Faraco, Luiz Vilela e Hilda Hilst.

C: Quais são os temas mais férteis para você? Quais inquietações o levam à ficção?
DG: Não trabalho com um tema definido quando vou escrever contos. Me interesso por pequenos momentos de transcendência na vida de personagens, instantes de epifania. Em muitos contos que escrevo, há situações em que personagens lutam contra a causa de seu desconforto, percebem que algo está errado em suas vidas, mas só conseguem superar esse desconforto por um instante breve. Não se trata de uma opção por um tema, mas provavelmente um reflexo do que vejo ao meu redor. As pessoas são impotentes, mas existe uma beleza na vontade de transcender essa impotência. Enxergo isso no cotidiano, todos os dias, e creio que daí saem muitos pontos de partida para os meus contos.

C: O que pretende retratar com sua obra? Quais as intenções que o levam a escrever: retratar um universo particular ou levar o leitor a refletir a respeito de seus personagens e do mundo que é mostrado nos livros?
DG: Não quero demonstrar nada com meus contos. Para isso, existem artigos e ensaios. A única coisa que pretendo com a literatura é dividir com as outras pessoas minha experiência do mundo, coisas que me sensibilizam, que não estão evidentes, mas que podem ser expressadas pela arte. Mas não se trata de um método, isso precisa estar claro. A literatura parte de uma necessidade individual de expressão, mas o essencial está justamente em converter essa necessidade pessoal em algo de valor coletivo.

C: Porque a opção pelo conto, e não pela poesia ou pelo romance? Isso tem a ver com o meio (internet) em que essa literatura foi primeiramente expressa?
DG: Já tentei poesia e não deu certo. O conto sempre foi o formato mais natural pra mim. Ainda não dediquei forças a tentar escrever um romance ou qualquer narrativa mais longa. O que me interessa expressar costuma caber melhor no formato do conto, que eu adoro. Acho que os bons contos contém poesia, e tento colocar alguma nas minhas narrativas.

C: Ao começar a "publicar" na internet, havia uma preocupação estética e formal (um planejamento prévio, por exemplo) de adequar a narrativa a esse meio, ou tal adequação deu-se de maneira natural?
DG: Nunca houve planejamento. Sempre penso primeiro no texto, depois é que vou me preocupar em sua adequação ou não às formas de divulgação e publicação.

C: A opção pela internet foi uma forma de "testar" a produção literária, para só depois levá-la ao papel ou foi um meio em si, definitivo, para abrigar aquela produção específica? No início você pensava em levar essa obra para fora da internet?
DG: Considero o livro o veículo por excelência da literatura. Desde o início, entendi a internet como um meio adicional de divulgação, além de um espaço aberto e de baixo custo para poder experimentar a vontade. A não ser em casos específicos, como de uma coluna escrita especialmente para um determinado site, escrevo pensando no livro como destino final da produção literária.

C: Fale sobre sua trajetória como escritor desde o início até a chegada no Cardosonline. Como se deu esse caminho?
DG: Antes do Cardosonline, eu não tinha nenhuma trajetória como escritor. O Cardosonline foi o primeiro lugar onde passei a publicar regularmente, no início com duas colunas por semana, depois com uma coluna semanal. Antes do COL, escrevia de maneira muito esparsa, publicando eventualmente em fanzines. Os três anos de existência do Cardosonline coincidiram com a minha participação em oficinas literárias e com o surgimento dos meus primeiros contos que realmente valiam alguma coisa.

C: E porque surgiu a idéia da criação de Livros do Mal? A internet já não era o bastante? Vocês acreditam que há alguma relação entre esse movimento (da internet para o papel) e o que aconteceu com a geração mimeógrafo, que posteriormente passou a publicar livros? Quais são os pontos de convergência e o que difere essas duas realidades separadas por quase trinta anos?
DG: A Livros do Mal foi um projeto que visava realizar ao mesmo tempo dois sonhos que eu e o Daniel Pellizzari tínhamos em comum: publicar nossos livros de estréia e criar uma editora independente, por onde pudéssemos editar não apenas nossos próprios livros, mas também obras de outros autores que apreciávamos. Nós dois tínhamos uma visão em comum, da internet como meio de laboratório e divulgação, e do livro impresso como meio literário definitivo. Quanto ao movimento dos mimeógrafos, confesso que não sei quase nada a respeito dele. Sou um cara jovem (hehehe). Tive contato apenas com o xerox, que possibilitou a existência de muitos fanzines nos anos imediatamente anteriores à popularização da internet. Mas pelo que dizem, há uma certa semelhança entre o boom dos contistas na década de 70, relacionado ao mimeógrafo, e esse novo boom do fim dos anos 90, relacionado com a internet.

C: Vocês acreditam que fazem parte de uma geração de escritores que está desenhando o futuro da literatura brasileira em diversos pontos do país ou pensam que sua literatura é uma literatura deste momento, que ainda não tem pretensões futuras? Há algum intercâmbio entre esses grupos (como alguns aqui de São Paulo, o Cálamo, por exemplo)? Você consegue notar diferenças (ou convergências) importantes entre essas muitas manifestações literárias, quanto a conteúdo, forma, estética?
DG: Não posso afirmar que estamos desenhando o futuro da literatura brasileira. Seria uma avaliação muito precipitada e um tanto pretensiosa do nosso trabalho. O que posso dizer é que queremos orientar nosso trabalho com a Livros do Mal nesse sentido, catalisar o novo e o original, ao invés de apenas alimentar modelos estéticos que já estão aí. Até que ponto vamos alcançar esse objetivo, não sei dizer. Queremos dar nossa contribuição à renovação da literatura nacional, quanto a isso não há dúvida. Temos contato com escritores de vários estados do país, muitos deles inéditos. Há autores jovens, inéditos e talentosos em Salvador, São Paulo, Porto Alegre. Estamos de olho, atentos para o que está sendo produzido. Mas ainda não consigo notar nenhum padrão de convergência entre a produção de diversos estados. Há alguns temas recorrentes, cenários e comportamentos urbanos por exemplo, mas ao mesmo tempo muita variedade, desde o ultra-realismo até o fantasioso, o fantástico. De minha parte, deprecio qualquer literatura que se sustenta em maneirismos de estilo e estéticas publicitárias, bem como textos reduzidos à experiência do próprio autor e temáticas presas aos valores românticos clássicos, que já não servem pra nada hoje em dia. Creio que há problemas contemporâneos que os artistas ainda não investigaram, relativos a essa nova geração formada em meio à economia global, à tecnologia digital, à liberdade sexual, à solidão dos centros urbanos etc.

C: De que forma o fazer literário interfere ou muda sua maneira de ver e interpretar o mundo?
DG: Acho que o contrário é mais coerente. Minha interpretação do mundo e minha maneira de vê-lo é que influi no meu fazer literário. E esse mecanismo é misterioso. Seria perda de tempo tentar racionalizar isso.

C: Porque a opção por uma publicação independente? Isso reflete a precariedade do mercado editorial no país, que não dá conta de abrigar toda a produção literária? Será possível mudar essa situação?
DG: Optamos pela publicação independente por dois motivos principais. Primeiro, as editoras não têm muito espaço para autores novos, tampouco costumam dedicar tempo e atenção à novidade. Em qualquer área, não apenas a editorial, o mercado trabalha essencialmente com fórmulas, abrindo eventuais exceções para o novo. O segundo motivo, e talvez o mais importante, é que eu e o Pellizzari queríamos publicar o livro do nosso jeito: preparar os editoriais, fazer a capa, fazer a editoração, escolher o formato, divulgar, colocar pra vender nas nossas livrarias prediletas. Gostamos de todo o processo de edição, queríamos dominar isso, criar não apenas o texto mas também o objeto, o livro. Publicamos independente por vontade e por prazer. Tanto que nem mandamos nossos originais pra nenhuma editora. A situação das editoras, por sua vez, depende de muitos fatores. Muitas delas são bem-intencionadas, fazem o que podem, apostam eventualmente em algo novo mesmo que saibam que não vai vender, e desde que haja algum outro best-seller no catálogo para compensar esse prejuízo. Mas é uma equação complicada que depende do mercado, das livrarias, da formação educacional do povo, da cultura do país.

C: Em sua opinião, é possível sobreviver de literatura em um país como o Brasil? Se não, é frustrante para o escritor ter de trabalhar em uma outra atividade profissional e deixar a literatura para "as horas vagas"? Como conciliar tais atividades?
DG: De maneira geral, não é possível sobreviver de literatura no Brasil, e nem em outros países, com a exceção dos grandes best-sellers. Quase todo escritor tem outra atividade para bancar sua sobrevivência. Conciliar a atividade literária com a profissional é um desafio do qual o escritor dificilmente escapa. Todo escritor que acredita no que faz acaba organizando sua vida ao redor da literatura, e para isso cada um encontra uma estratégia diferente.