Clipagem


Revista Bravo!
janeiro de 2003
Por José Castello


Dissonância e atrito

Longe dos tempos dos manifestos, a novíssima geração de escritores brasileiros recusa filiações a estilos e conquista espaço na Internet.

As melhores ficções são aquelas que parecem desprovidas de laços com seu tempo e com seu meio, provocando o desconforto de destoarem tanto dos hábitos dos intelectuais ilustrados como das expectativas amestradas do leitor comum. É o caso de , romance de estréia da carioca Nilza Resende, que chega este mês às livrarias. Uma ficção indiferente aos cânones e primazias de seu tempo, que parece ter sido escrita só por pelo prazer de escrever. Aos 43 anos, e depois de dez anos trabalhando com narrativas para crianças, Nilza chega à ficção com a autonomia íntima de uma menina. É esse espírito desarmado, e não sua fidelidade a um grupo ou um projeto, que define os melhores talentos da novíssima geração de narradores brasileiros, muitos deles, inclusive, abrindo espaço para novas editoras e ocupando espaço na Internet.

Se há algo que demarca essa novíssima geração surgida a partir da segunda metade dos anos 90, é justamente sua recusa em pertencer a uma geração e a aposta, solitária, na aventura da escrita. Dos mais experientes e consagrados, como Bernardo Carvalho, autor do festejado Nove noites, aos mais desobedientes e misteriosos, como Clarah (ou Lady) Averbuck, autora do quase desconhecido Máquina de pinball, eles compartilham uma grande dificuldade de "pertencer" - seja não só a uma filiação, mas também a um estilo, ou mesmo uma assinatura e a uma identidade. Com seu primeiro livro, Aberração, de 1993, Bernardo Carvalho foi provavelmente o pioneiro nessa ruptura com padrões, tendências e expectativas de época. Depois disso, outros escritores originais e também na faixa da meia-idade, como Rubens Figueiredo, Vitor Ramil e Luiz Ruffato, vieram se firmando nessa zona de transição, em que as classificações se tornam escorregadias e as reputações se formam mais por dissonância e atrito do que por semelhança e adesão.

Já não são mais os grupos do experimentalismo histórico, emparelhados em manifestos, repugnâncias comuns e princípios devastadores. Agora, as posturas são isoladas e a tensão se produz, justamente, pela presença dessas individualidades que decidiram recusar lugares e configurações, preferindo a liberdade da solidão. No fim dos anos 90, e do século 20, nomes como Nelson de Oliveira, Marcelo Mirisola, André Sant'Anna, Amílcar Bettega Barbosa e Antonio Fernando Borges foram conquistando seu público. Nessa geração oculta, que hoje toma a frente do cenário literário brasileiro, alguns nomes, já nem novos - mas novíssimos no que representam - começam a se impor. Com eles, a literatura se fragmenta e se expande pelas pequenas editoras e pelas páginas da Internet, abrindo caminho para o século 21.

Livros como Como se Moesse Ferro, de Altair Martins, Ovelhas que Voam se Perdem no Céu, de Daniel Pellizzari; Vidas Cegas, de Marcelo Benvenutti; Braz, Quincas & Cia, de Antonio Fernando Borges; O Fluxo Silencioso das Máquinas, de Bruno Zeni; Pequod, de Vitor Ramil; Azul e dura, de Beatriz Bracher, e Quando o Escriba do Castelo era Eu, de Victor Leonardi, são exemplos de uma literatura vigorosa, que não deseja acertar, ou vender, ou corresponder, mas só provocar e inventar. São escritores que trilham o caminho aberto por Bernardo Carvalho, transitando no inesperado e no tenso, mas o fazem sem reverências, sem interesses comerciais e sem dogmas. Não podem ser tidos como "seguidores", ou "descendentes" de Carvalho, até porque muitos deles nem chegaram a lê-lo e, em alguns casos, começaram a escrever antes dele. Contrapostos, seus livros delineiam um momento em que a literatura brasileira dá um grande salto, não só de qualidade, mas, sobretudo, de atrevimento.

Abriram caminhos, ainda, para as novíssimas editoras que sinalizam hoje esse sucesso, entre as quais se destacam a Livros do Mal, a Ciência do Acidente, a Conrad, a Nankin, a WS, a Travessa dos Editores e a 7 Letras. Sim, ainda são, no geral, nomes ocultos - até porque alguns deles permanecem mesmo na penumbra do ineditismo, como é o caso de Diter Stein, que, aos 50 anos, terá seu O Brilho de Sangue finalmente editado este ano pela Travessa dos Editores, de Curitiba. Geração que, indiferente ao mercado editorial, se oculta nos sites literários e, sobretudo, nos blogs da web, território difuso, mas potente, no qual se afirmam escritores como Paulo Bullar, Jorge Cardoso e João Paulo Cuenca. O de Clarah Averbuck (http://brazileirapreta.blogspot.com/), talvez o mais famoso deles, surgiu em 2001 e já teria chegado a ter uma média de 1,8 mil acessos por dia. São, em princípio, veículos para comentários e confissões, mas muitos escritores passaram a usá-los como falsos diários, isto é, pura ficção. Eles se tornaram, assim, um lugar no qual os escritores sem espaço passaram a divulgar seus trabalhos.

Alguns escritores, como o economista carioca João Paulo Cuenca (http://folhetimbizarro.blospot.com/), de 24 anos, o roteirista de cinema Jorge Cardoso, de 30 anos, radicado em Emea, na Suécia, e a revisora técnica radicada em Petrópolis, Maira Parulla (http://prosacaotica.blogspot.com/), de 47 anos, ainda não têm livros publicados, mas passaram a ser reconhecidos unicamente pelos textos que publicam na Internet, tanto em blogs pessoais, como em revistas literárias virtuais como a célebre Revista A (www.revistaa.com.br), em vias de extinção, e em blogs coletivos como o "fakerfakir" (www.fakerfakir.hpg.com.br). Outros, como Joca Reiners Terron, mato-grossense de 34 anos, designer gráfico e dono da editora Ciência do Acidente, mesmo publicando em livro, conservam seus blogs, no caso o "Hotel Hell" (http://hellhotel.blogger.com.br). A intimidade com a rede não impediu Terron de fundar uma editora, nem de escrever ficções como o inquietante Não Há Nada Lá, um dos melhores romances produzidos pela geração novíssima. Seu livro, de fato, prenuncia algumas das tendências mais fortes dessa geração sem tendências: o interesse pelo vazio, o desinteresse pela figuração, a herança explícita da cultura pop e a retórica em fragmentos. "Não tenho modelos literários", diz Terron.

O que os caracteriza? Nada os caracteriza. "Minha maior ambição é não ter estilo", afirma o paulista Ronaldo Bressane, de 32 anos, autor de Infernos Possíveis. E vai além: "O que define minha literatura é o que deixei de ler". Se lêem, é para transformar, não para repetir. "Quero ser um híbrido", assegura o mineiro Wir Caetano, de 42 anos, autor de Morte Porca. Enquanto Bernardo Carvalho sempre manifestou seu desprezo pela metáfora, alguns, como o gaúcho Altair Martins, de 27 anos, afirmam o contrário: "Pouco me importa se me acusam de beletrista, mas amo a metáfora". Um livro como o precioso Pequot, de Vitor Ramil, ainda que lançado em 1995, já anunciava essa reviravolta, com sua indiferença pelos padrões do mercado e sua escrita surpreendente, guardando, porém, o estilo depurado e preciso que caracteriza o autor, também compositor e músico profissional.

Essa discrepância de caminhos, desprezando as vias tradicionais para a carreira literária, é outra qualidade importante. Clarah Averbuck, que anuncia para 2003 o romance Vida de Gato, se declara fiel a ícones do pop como John Fante, Charles Bukowski e Paulo Leminski. Daniel Galera, autor de Dentes Guardados, prefere Tchekov e Kafka. Enquanto Michel Laub, autor de Música Anterior, afirma seu apego a Herman Broch e Thomas Bernhard. Todas os caminhos levam ao novo. Não se interessam, também, em reverenciar a literatura. O paraense Edyr Augusto, de 48 anos, autor de dois livros muito elogiados, Éguas e Moscow, diz sem pudores: "Sou um leitor vulgar. Leio qualquer coisa". Altair Martins chega a dizer: "Sou brega. Cafona mesmo. Porque me disseram que a literatura é concisão, é contenção, é razão e eu, de tudo isso, não gosto nada".

Guardam, em geral, uma visão pouco idealizada da atividade literária. Quando perguntam ao ainda inédito Diter Stein o que espera da literatura, ele, que sobrevive trabalhando com Tecnologia da Informação, diz: "Acredito que nada". O também inédito Jorge Cardoso, roteirista de cinema, de 30 anos, diz que escreve apenas "para salvar o que me resta de gente". O baiano João Filho, de 27 anos, balconista num armarinho de miudezas em Bom Jesus da Lapa, autor de dois livros inéditos (espera publicar este ano o mais recente deles, Trashion-dental education) e colaborador de revistas na web, afirma, por sua vez, que escreve "só para não explodir".

Cíntia Moscovich, autora de Duas Iguais e Anotações Durante o Incêndio, editora da página de livros do Zero Hora, resume: "Quero tudo o que não consigo fora da literatura". Tal qual esta geração a pratica, a literatura se converte, assim, numa espécie de mundo alternativo, ou virtual, que vem preencher as lacunas do mundo real. Boas mentiras, que completam a insuficiência da verdade. Na orelha de Vidas Cegas, Marcelo Benvenutti, de 32 anos, formado em Ciências Contábeis, apresenta, sob sua foto, uma advertência: "Marcelo Bencenutti é o maior mentiroso que já escreveu em qualquer língua. Ele não é um escritor. É um ladrão e assim deve ser tratado". Talvez a foto também não seja sua.

Há, em todo caso, a redescoberta de uma utopia da fraternidade. O paulista Marçal Aquino, 44, de quem saiu esse ano O invasor, se diz muito mais interessado "nas gentes das ruas" que nos livros. Esse elemento idealista se expressa também em Amizade, livro de encerramento da trilogia de André Sant'Anna iniciada com O Amor? e que prosseguiu com Sexo, que ele pretende entregar ao editor nas próximas semanas. André diz, claramente, que a literatura é, para ele, uma grande vingança contra o mundo em que é obrigado a viver. Pode não funcionar, pode não corrigi-lo, mas desafoga.

Mesmo espírito de desabafo que vigora no turbulento Um deus dentro dele, um diabo dentro de mim, de Nilza Resende. Formada em Letras e em Jornalismo, Nilza se especializou em textos profissionais, tendo inclusive trabalhado como roteirista do irmão, o cineasta Sérgio Resende. "Eu sempre escrevi por encomenda e sempre busquei achar a melhor forma de descrever o produto do outro, o desejo do outro", diz. A literatura a levou a encontrar a própria voz, em sincronia com a experiência de sua personagem, Lila, que vive submissa ao marido, Raul. "Enquanto ela andava, mendiga à cata de quê, à cata de nada, ele vinha, vinha, entrava pela cabeça dela e ia tomando seu corpo, o pescoço, os braços, as pernas, feito uma câimbra que não passa". Enfim, depois de dez anos de casamento, decide expulsá-lo de casa. Certa de que "o amor é pobre de léxico", Lila narra sua desventura, não para fazer estilo, ou para a glória, mas para enfrentar o real e, com isso, sobreviver.

Essa tensa relação com o mundo é um sinal, promissor, de que a realidade volta a interessar aos escritores. Eles já não desejam, porém, a pose dos retratistas, ou a simplificação dos sentimentais. Em vez disso, buscam _ e fazem uma escrita que venha ferir o real, como alguém que, durante a noite, se pusesse a sacudir um sujeito que dorme. Esse sujeito é a literatura.