Clipagem


Do blog Excertos de uma vida provisória
29 de maio de 2003


Entrevista: Daniel Pelizzari, o Mojo

É, eu sei que eu prometi pra ontem à noite, mas o Blogger não me deixou atualizar

Tive esta idéia por acaso, ao terminar de ler o Livro das Cousas que Acontecem. Já havia lido antes o Ovelhas que voam se perdem no Céu e pensei em fazer alguns comentários aqui. Aí me veio a idéia de ampliar isso, tentar dar alguma variada no maçante repertório de lamúrias deste blogue e ainda brincar de jornalista. Enviei então uma proposta de entrevista ao Mojo, ele atenciosamente aceitou, eu enviei o roteiro de perguntas e ele me respondeu. Confesso que fiquei enlevado com o resultado, não esperava que a coisa fosse render tanto - menos pela reconhecida capacidade do Mojo e mais pelas perguntas que eu havia feito, não sabia se elas faziam jus ao entrevistado. Descobri que a entrevista ficou como eu sempre pensei que deveria ser uma: uma troca de impressões e experiências que transforma um pouco cada um dos participantes - sem boiolagem, por favor.

Uma entrevista "séria" teria uma descrição de ambiente, um enrolebs falando de como o entrevistado gesticulava quando respondia, mas como esta saiu por email, não precisa disso. Que o entrevistado fale por si, e talvez um dia eu até repita essa experiência com outro escritor que responda a três requisitos básicos: tenha escrito algo que eu goste, esteja acessível por email e concorde em responder. Senhoras e Senhores, Mojo:


Agora que tu é um escritor em tempo integral, tens um método que usas pra escrever? Essa coisa de horários definidos, planos de construção e elaboração de livro? Sobra tempo (ou grana) pro trago?

– Mojo – Horário definido é uma coisa que não existe pra mim, nem pra escrever nem pra coisa alguma. A hora certa de fazer qualquer coisa é no momento em que ela surge (ou no momento em que consigo sobrepujar minha mitológica indolência). Quanto à planificação, sou um bom obsessivo. Não acredito nesse papo de espontaneísmo, acho isso uma piada de péssimo gosto. Na maioria das vezes fica parecendo conversa (isto é, monólogo) de bêbado, uma das poucas coisas universalmente abominadas neste planeta. Prosa espontânea vá lá, diversas vezes funciona e muito bem, mas quando é criada com todo cuidado possível, para que fique parecendo suuuper espontânea. Ficção escrita de forma "espontânea" perde toda a espontaneidade e, pior ainda, qualquer verossimilhança.

Agora estou escrevendo uma novela, e levei três meses e meio só para terminar a planificação detalhada de cada capítulo (e do projeto gráfico, e da capa, e de todo o resto que importa e colabora para a experiência da leitura). É como um algoritmo literário, tudo tem função e hora certa para acontecer, cada frase, cada vírgula está sob meu controle total. Eu tenho duas tabelas que categorizam e inter-relacionam cada um dos (cinco) tipos de texto do livro, com todas as regras que eu decidi que devem regê-los. Sim, eu sei que isso é doente. É claro que na prática eu não preciso das tabelas, sei tudo de cor e produzo de acordo, mas isso me deixa alegre, mais tranqüilo e, principalmente, mais seguro do que estou fazendo. Deixo todos os riscos e quaisquer surpresas para o momento da planificação: quando finalmente estou escrevendo, sigo à risca o que estabeleci e sei exatamente onde quero chegar e como tudo será feito.

Quanto a beber, o único trago que eu bebo com regularidade é café. Muito raramente eu ainda tomo uns porres isolados, mas (quase) sempre em casa. Beber em público é um hábito bárbaro que a muito custo eu consegui controlar. De resto, me dou bem com minha vida de anacoreta, e não sinto muita falta de ter dinheiro para gastar em bobagens. Eu só preciso de um teto, de alguma comida e de um computador supostamente obsoleto conectado à internet. O resto é supérfluo. Minhas roupas de inverno são as mesmas desde 1993.

Ainda nesse assunto, a mudança pra São Leopoldo te deu aquela (Eu me mudei pra Novo Hamburgo, não pra São Leopoldo. Corrige aí, chefe ;) - corrigido, eu vivo confundindo as duas, foi mal aí) tranqüilidade reclusa da distância? Tem ajudado tua produção?

– Mojo – A "tranqüilidade reclusa" eu busco apenas dentro da minha própria cachola. É o único lugar confiável para essa procura. No fundo não importa muito onde você esteja. A solidão, essa condição necessária, deve ser mesmo um estado cognitivo quase independente das circunstâncias exteriores, ou está condenada ao fracasso. Me mudei pra cá porque minha mulher precisava morar aqui por motivos profissionais. Veio e trouxe suas malas, das quais sou a mais pesada. Nem percebi muito a mudança, acho que estava concentrado digitando alguma coisa.

Tem quem ache que eu faço gênero quando digo que não saio de casa. Acho que entendo, mas não posso mentir. Eu não saio mesmo de casa, então não faz muita diferença se estou morando aqui, em Porto Alegre ou em Dublin. O entorno vai ser sempre o mesmo: meus computadores, meus livros, meus badulaques, o fogão, a cama. Convivência diária, só com minha mulher. Quando eu morava sozinho, passava dias sem sair de casa, sem ouvir o som da minha própria voz. Agora eu até que converso um tanto com a patroa, o que de certo modo é fantástico. Mas o que muda mesmo (e, no meu caso específico, pra melhor) é o que você enxerga pela janela. No Bom Fim eu via grades e outros prédios quase no meu nariz, e escutava brigas e delírios de vizinhos o dia todo. Agora, no décimo andar, eu vejo morros cheios de árvores no fundo de um grande espaço aberto ponteado de prédios aqui e ali.

À noite não escuto nada além de alguns rachas no fim-de-semana. Admito que isso me agrada mais e colabora na hora de escrever, mas é apenas a vista-da-janela, uma coisa para onde olhar quando quero descansar os olhos depois de uma dúzia de horas na frente do monitor. Da cidade de Novo Hamburgo eu só conheço o caminho até a rodoviária, dois supermercados, o cinema e a banca de revistas do shopping, três agências bancárias, o correio, três restaurantes e algumas igrejas. Já me parece o bastante

Escrever é difícil, naquele sentido que muitos escritores descrevem? O da "Luta com as Palavras" (prometo que é a última citação)? Ou tens aquilo de um primeiro fluxo de texto facilitado e depois é só podar, aparar e ajustar?

– Mojo – Criar é sempre divertido, mas escrever às vezes é muito chato. Diversas vezes eu fico com preguiça de escrever o que tenho na cabeça. Sorte dos leitores.

Acho relativamente fácil imaginar e desenvolver personagens e situações, criar subtextos, essas coisas. O problema é mesmo escrever. Não porque eu – oh! – sofra nesse processo por algum imperativo metafísico, mas porque sou muito obsessivo e perfeccionista, e isso vem piorando a cada dia que passa. Faço ritos ocasionais para tentar me libertar disso - publicando contos escritos de uma vez só e sem revisar (Surpresa, do Cousas) ou publicando diversos fragmentos de livros que abortei (os textos da antologia Geração 90: Os Trangressores) –, mas tenho muitas dúvidas quanto à sua eficácia.

De tanto podar e controlar meu texto, vou acabar virando um escritor de haikus ou um pastiche do Dalton Trevisan, o que seria muito triste. O Dalton Trevisan, pro meu gosto, é um autor muito mais ou menos. Esses curitibanos passam o tempo todo dando atenção pro Trevisan e pro Leminski e esquecem - ou pior, esnobam - o Jamil Snege (que Deus o tenha e não esqueça de levar cigarros) e o Valêncio Xavier. O Brasil é mesmo um país tragicômico.

Lendo o Cousas, percebi que deste a este livro uma unidade maior, o que ressalta o caráter de reunião de textos esparsos do Ovelhas. De um modo geral – opinião minha – esse efeito de unidade dá ao Cousas uma aparência de livro mais maduro, até mesmo melhor acabado. Tu concorda? Haveria algo no Ovelhas que tu ainda mudaria numa reedição?

– Mojo – Sim, o Ovelhas é uma antologia, um apanhado geral das coisas menos vergonhosas que escrevi dos 22 aos 27 anos. Era inevitável que o conjunto fosse heterogêneo, e também é meio óbvio que isso transpareceria na leitura dos mais atentos. Mas não, eu não mudaria nada. Já mexi demais naqueles textos, cansei. Quando saiu a segunda edição, mudei algumas coisas aqui e ali em textos mais recentes, mas agora è morto. Chega. A edição italiana está saindo igualzinha à brasileira, não quis (quer dizer, quis, mas não me permiti) tirar texto algum.

O Cousas tinha um projeto, linhas mestras, coisetal. Ele foi concebido como um livro desde o começo, os contos foram surgindo dentro de um universo específico. Alguns deles já existiam antes do Ovelhas, mas se encaixavam no conjunto. Fica mais harmônico, mais simétrico. É assim que pretendo trabalhar a partir de agora, nessa base de um livro por ano enquanto minha falta de outras atividades o permitir.

Teus textos trazem sempre um apurado, embora pouco convencional, senso de humor. Achei algumas narrativas engraçadíssimas, como Teias, As Boas Maneiras do Acaso, do Ovelhas, ou Buraco, O Sêmen de outras Pessoas, Adágio para Umbigos e Proibida a Entrada... do Cousas, só para citar alguns. O inesperado é um elemento de humor? E tua opção por esse humor enviesado é consciente? Tu escreve tentando encaixar esse humor irônico, às vezes ácido, no que estás produzindo ou é um resultado espontâneo?

– Mojo – É totalmente natural, às vezes até atrapalha o que eu queria como resultado final, mas não consigo escapar. Esse senso de humor é uma característica muito forte da minha personalidade. Talvez eu seja inteligente demais para ser sisudo, o que muitas vezes é uma pena: tanto ser inteligente quanto ser um maldito engraçadinho. Preciso aprender a conviver com isso, fazer o quê. O mais engraçado de tudo isso é observar quem não vê graça nenhuma. Eles acabam virando personagem.

Os acontecimentos de um texto ficcional obedecem a uma norma ditada pela própria construção da história. No momento em que um escritor opta por um caminho para uma narrativa, seu repertório de alternativas posteriores estará condicionado por essa escolha anteriormente feita, seja para confirmá-la, desenvolvê-la ou negá-la. Como tu encontra essa coerência interna e essa verossimilhança em um texto que extrapola o real?

– Mojo – Não sei. Deve ser prática. Mas, como tu colocou, essa escolha pode ser confirmada, desenvolvida ou negada, ou seja: não há limites além do talento, da técnica e da paciência. Sou um escritor, é quase um dever moral eu saber o que estou fazendo. Caso contrário, seria apenas um diletante.

Quatro Arestas, teu conto do Ovelhas, já havia aparecido na Internet, mas naquela época o narrador não falava "porto-alegrês". Por que a decisão de adotar essa linguagem ao publicar o texto em livro?

– Mojo – Achei que ia ficar divertido. Ficou? O Agosto também usa portalegrês, mas parece menos carregado pela estrutura diferente. O Quatro Arestas é totalmente oral, então o dialeto carrega tudo nas costas. Tenho um bom ouvido para diálogos, dialetos, idioletos, tiques de linguagem e quetais, então resolvi aproveitar isso em algo mais prático do que fazer imitações para entreter os convivas.

A escolha dos pontos de vista de um animal como narrador da história em Um Hamster e Agosto – obedece a uma tentativa de experimentação ou poderia ser enquadrado como alegoria?

– Mojo – Qualquer coisa que eu faça pode ser enquadrada como o leitor ou crítico ou fuinha quiser. Não posso fazer nada contra isso, maldição profunda. Mas já que estou tendo a oportunidade de dar meus pitacos, simbora: sim, são alegorias. Eu gosto de alegorias, fábulas, metáforas. Eu cresci lendo a Bíblia, livros de mitologia, tratados alquímicos, o Corpus Hermeticum, evangelhos gnósticos, a edição Standard dos livros do Freud, essa coisa toda. Acho que fiquei condicionado a ver o mundo através de símbolos e de retransmitir minha experiência do mesmo modo. Tudo para mim é símbolo e está interagindo com outros símbolos. O mundo visível, como eu o enxergo, é um inferno de associações livres sem fim. Para soar mais charlatão, diria que é uma cadeia interminável de informação simbolica em permanente intercâmbio. Mas não é? Claro que é.

Quanto à experimentação, confesso que nunca comecei um texto pensando "ahá, agora vou EX PE RI MEN TARRRR! tremei, mortais!". Ok, tirando a parte do "tremei, mortais!", o resto nunca passou pela minha cabeçorra. Meus textos sempre têm a forma que me parece óbvia e/ou a melhor para comunicar e/ou esconder o que deve ser comunicado e/ou escondido. Tenho um certo domínio técnico que me dá essa liberdade, e graças a isso a forma não é realmente uma de minhas principais preocupações. Minha obsessão é o subtexto e a alegoria, e é por isso que eu prefiro contos a qualquer outra forma narrativa. Eles trabalham diretamente com o que realmente importa.

Algumas criticas têm vinculado teus textos num único pacote com os da Clarah, do Galera, do Mirisola e mesmo da Fernanda Young, o dos escritores que "Vivem o que escrevem e escrevem o que vivem" - em que pese a diferença de estilos e mesmo o viés metarrealista de tuas obras. Esse tipo de apreciação incomoda?

– Mojo – Isso é coisa de jornalista preguiçoso. Já me incomodou mais, agora eu quero que se dane. Falem o que quiserem, não posso fazer nada. Já é difícil o suficiente me preocupar com o que está perto da mim. É mais do que óbvio: todo escritor "escreve o que vive". É impossível fazer diferente. Mas existem vidas e vidas. Minha ocupação principal é a vida interior, e minha única forma de compartilhá-la e documentá-la é escrevendo ficção. Minha vida, digamos assim, "empírica", não tem grandes emoções. Já foi até bem movimentada, ô se foi, mas estou aposentado disso há vários anos. Se eu escrevesse sobre minha "vida", seriam páginas e páginas de um sujeito na frente de um computador ou de um livro, e só. Meus livros não são assim, como qualquer um pode ler. Com uma única exceção lamentável, nunca me coloquei como personagem na minha ficção e acho um tanto pobre esse negócio de "alter ego", na sua acepção mais simplista de usar o "alter" como um "ipso", ao invés de efetivamente um outro eu potencial ou qualquer alternativa mais rica em possibilidades. Mas ó, seria engraçado eu "viver o que eu escrevo". Prometo tirar fotos na próxima chuva de vacas que eu presenciar, principalmente se depois choverem gatos e velhinhas.

O engraçado é que já li pessoas me descrevendo como arroz-de-festa, alguém que vive na noite e no AGITO. Isso é tragicômico. Olha, deve ter algum outro gordo barbudo, megamíope e tatuado por aí, e o salafrário está acabando com minha reputação. Eu não agüento meia hora (sendo otimista) em um Ossip da vida. Sou muito mocinha. Fico angustiado demais, é muita gente, muito vazio, muita entropia. Aí ou eu vou pra casa ou começo a beber sem parar. Como não sou chegado a beber em público, vou pra casa. Ou melhor, não chego nem a sair dela. Sou um sujeito intropectivo. Não sinto falta alguma de socialização nesse estilo "socializar por socializar", é algo que simplesmente não faz parte de minha índole e que me parece muito, mas muito, sobrevalorizado. Pior, só a superestimação da juventude, essa coisa deprimente. Por quê ter vida social, se ao sair à noite você provavelmente só vai encontrar um monte de gente agindo como jovens? Isso é apavorante. Envelheçam, por favor.

Teus textos já foram a base para um espetáculo de teatro, e a estrutura do Adágio para Umbigos é a de um esquete. Tu pensa em te dedicar a escrever peças?

– Mojo – Ah, isso é porque eu já fui bilheteiro de uma companhia teatral, véi. Mas não, eu não pretendo escrever peças. Prefiro ser adaptado, dá menos trabalho e mais satisfação. Vale o mesmo para cinema. Já até pensei em fazer alguns longas, mas deixei pra lá. Dá muito trabalho, custa muito dinheiro e, principalmente, envolve gente demais pra eu me sentir confortável. Pra fazer qualquer curta em 16mm tu precisa reunir uma carrada de pessoas, isso é quase imoral. Não tenho tanta boa-vontade. Escrever é muito mais tranqüilo, principalmente quando você edita os próprios livros. Na minha cabeça, quanto mais você puder prescindir do envolvimento direto de outras pessoas na produção de um trabalho seu, melhor. No máximo vou me aliar a um desenhista quando fizer um álbum de quadrinhos, e isso só porque não fui agraciado com a dádiva do desenho.

Ainda estás preparando o Tanso, teu romance em porto-alegrês? Tu o definiste no fim do Cousas como um "romance histórico". Em que época tu pretendia situá- lo? Ou o significado de "romance histórico" aqui não é aquele já difundido?

– Mojo – "Romance histórico" era uma piada de no mínimo três sentidos. O livro, que está virtualmente pronto mas não será publicado tão cedo, se passa na última década do século passado, ou seja, nos anos 90. 1992, para ser mais exato. O ano do grande quebra-pau na Osvaldo Aranha, da migração para o entorno do Nazariu's e para a "Osvaldinho" e também da vitória final dos marginais, dos traficantes e do Isaac Ainhorn no Bom Fim. O bairro nunca se recuperou das porradas que tomou em 92, todo mundo sabe disso. Este não é o tema principal do livro, mas a noite do quebra-pau aparece com certo destaque, porque foi um fato histórico importante daquela época. Eu mesmo guardo uma simpática cicatriz no cocoruto graças às cacetadas que levei da polícia naquela noite. Eu tinha bebido muito Yukon Jack ("A ovelha negra dos uísques", R.I.P.) e minha camiseta branca do Black Sabbath ficou lavada de sangue. Puro metal. Ahhh, a juventude.

O quanto a tua experiência como autor em periodicidade regular no COL e em outras publicações eletrônicas influi na tua narrativa? E que outras influências tu apontaria no teu estilo e na tua temática?

– Mojo – A periodicidade regular em três anos de COL esgotou minha paciência e minha predisposição para voltar a fazer algo semelhante enquanto estiver vivo neste corpo. O que ainda restava, eu exterminei em um ano e meio de blog. Agora não consigo nem responder emails direito, de tanto enfado. Quero me concentrar apenas em escrever livros, e de resto fazer coisas que não tenham nada a ver com o ato de escrever. Programar, talvez. Administrar redes. Criar algoritmos. Cuidar de filhos. Cozinhar. Essas coisas relaxantes.

Como leitor, a sensação que tive ao terminar o Ovelhas foi de desespero, uma solidão triste e que envenenava a maioria dos teus personagens, mas com um acento de esperança, como no Arnaldo e os Moinhos ou no Missal para Rastejantes. Já no Cousas, tive a impressão de uma certa redenção pelo deboche, uma aceitação estóica do absurdo, um delicado transitar entre o cinismo e o humor. Tu te consideraria um autor otimista apesar de tudo?

– Mojo – Em última análise, eu sou um realista. Para lidar com isso e me manter funcionando de maneira quase satisfatória, preciso estimular meu senso de humor às raias da hipertrofia.

O Ovelhas tem diversos textos mais antigos. Quando você é jovem, as coisas parecem mais pesadas, mais graves. Pelo menos assim era comigo, e isso aparece no que eu escrevia. Com a idade vem uma certa dose de estoicismo, que pode degringolar em indolência niilista ou se estabelecer como uma melancolia bem-humorada, que veio a ser minha opção. É o mais perto que eu consigo chegar dela, A Sabiduria.

Não me digo otimista porque sei que não há saída. O mundo é isso que está aí, não é e nunca será paraíso algum. O mesmo vale para o humano. Também não posso me dizer pessimista porque, por intuição e contemplação, vivencio o transcendente - o que, de sua maneira peculiar, é bem engraçado e reconfortante. Creio que sou uma criatura em guerra com a mentira do mundo, usando essa mesma mentira como arma para tentar apontar o transcendente a quem quiser ver. Algo assim. Mas prefiro dizer que sou apenas um bom mentiroso in the inmost light service, eh?

Ah, sim. Por que tanto desprezo pela crônica, velhinho? Tu não a aceitaria nem com aquele velho sentido de "registro"?

– Mojo – Essa ojeriza pública pela crônica é só um traço caricato que eu gosto de enfatizar. Meu problema não é tanto com a crônica, coitadinha, mas com a sobrevalorização que ela tem na literatura brasileira. Até aquele que, em tese, é o prêmio literário mais importante do país mistura contos e crônicas em uma categoria única. Isso é uma aberração, um amadorismo que constrange até os pêlos distraídos que tomaram assento ao redor de meu rêgo. Um país onde cronistas são chamados de escritores tem algo muito errado na cachola. Leitores distraídos e/ou preguiçosos, no mínimo. Infantis, eu diria. Alguém que lê exclusivamente crônicas é, ao meu ver, quase um analfabeto funcional. No máximo um alfabetizado, mas nunca um leitor. Está se alimentando de obviedades e matando o espírito. Brrr.

Duas das tuas histórias, uma em cada livro, são intituladas História de Amor. Há ainda uma narrativa de abandono e separação (Missal...) e uma de obsessão e violência (Quatro Arestas). É possível escrever ainda uma história de amor?

– Mojo – Claro que sim. Meu livro novo é todo sobre amor. Ahn. Bem, mais ou menos sobre amor.

É difícil pensar assim, de forma monotemática. Até brinquei com isso naquele conto Monomania, que para mim, entre outras coisas, é sobre isso. Escreve-se sobre a vida, e a vida não tem um tema único. A vida é um CARROSSEL DE EMOÇÕES, sabe? E assim acaba sendo a literatura – várias forças sem limite definido interagindo de forma quase aleatória, puxando os personagens e as situações pra um lado e pro outro sem muito propósito ou objetivo final. É divertido. Se uma coisa só toma o controle, alguma parte da equação está doente e precisar tomar uma martelada na testa pra deixar de ser coió.

O slogan da Livros do Mal falava em "ler o novo". Mas o próprio projeto se vincula a uma espécie de tradição "maldita" e contestadora do cânone, que passa, me parece, por Bataille, Kafka, Beckett, os Beats e até mesmo o projeto da finada e saudosa Editora Brasiliense. Dá pra falar em uma "tradição do novo"? Ou eu acabei de escrever uma imensa bobagem?

– Mojo – "O novo" somos nós, os autores. Somos "novos" dentro do cenário da literatura mundial, e isso ainda vai durar algum tempo. "Novíssimo" já é um exagero, but I digress. A tradição literária é inescapável, assim como qualquer outra tradição. O que se pode fazer é ter uma postura diferente perante ela, não se deixar esmagar pela angústia de influência, brincar com o cânone. Levar a literatura a sério demais, no sentido de um respeito quase funéreo, é coisa de quem leu nada ou pouco - ou pior, que leu mal. É pura falta de intimidade com a matéria, um arremedo de respeito para com algo que não se apreende. Quem conhece a cousa de perto sabe que a realidade é bem diferente. Literatura é uma brincadeira mui refinada, uma "mahalila", com a qual o autor compraz a si mesmo e presenteia os companheiros de espécie. É um ato de técnica e compaixão, de alegria e criatividade. Isso é uma coisa muito séria, mas não tem nada - nada, nada, nada mesmo – de sisudo. Aos que não percebem a diferença, minhas simpáticas condolências e, vá lá, um ou dois piparotes.