Clipagem


Argumento
Cena Crítica - Literatura
por Hermano Freitas

Livros do Mal observada de fora

A LIVROS DO MAL inaugurou um pouco mais do que se está chamando de "grito de uma geração". Impossível de ser repetido conscientemente, o timing mais-que-perfeito caracterizou o contexto em que foram lançados os dois primeiros livros da editora independente, volumes que estreiam os excelentes daniéis Galera (22) e Pellizzari (27). Logo na impressão, os livros mostraram muita conveniência histórica ao ficarem prontos justamente no 11 de setembro, dia de olhar para a televisão e ficar mudo. Esta conveniência se repetiu no lançamento, o primeiro envolvendo livros na crônica festiva da famigerada casa noturna Garagem Hermética.

A madrugada da segunda-feira dia 1° de outubro registra um volume de chuva em centímetros maior que o de todo o mês de setembro deste supersônico ano de 2001. A tarde parecia indicar bons fluidos meteorológicos quando, perto das 18h, uma chuva diluviana cai sobre uma atônita Porto Alegre, que só pode tentar correr o mais rápido possível para casa. O problema é que isso acontece muito depressa. Ruas alagadas se apinham de veículos, engarrafamentos intransponíveis paralisam o trânsito, carros param, afogados na água que emana do céu e das sarjetas. A quem teve a privilegiada visão de uma Osvaldo Aranha sendo varrida por um rio de águas turvas navegado por copos de plástico não pode ocorrer nenhuma palavra que não remeta, ainda que no mais sutil significado, ao caos. Mesmo com todas as dificuldades de locomoção, o público compareceu em bom número. Com empenhada divulgação artesanal e impecável cobertura dos veículos oficiais, havia pouca chance de não se saber da existência do evento. A exibição de um vídeo produzido pela editora dava um toque de originalidade que não se impunha no restante do ambiente: era um lançamento como qualquer outro, só que no Garagem Hermética. E com Totozinho e cerveja, ao invés dos manjados vinhos baratos e salgadinhos do Birra & Pasta.

Os livros. Na capa e nas primeiras páginas, ilustrações de Guilherme Pilla, um realizador multimídia que parece ter revelado nos últimos tempos o verdadeiro e maior talento: as artes plásticas. De incrível originalidade, o traço de Pilla se dedica a buscar o belo através de figuras bizarras, em formas que se inspiram, no esboço, em formatos fixos de caracteres de computador. O resultado é no mínimo arrebatador: não se consegue ficar indiferente. Para quem conhece a escrita de Pilla, igualmente de formato muito original, é flagrante e surpreendente reparar no quanto o estilo próprio do artista se imprime nas duas formas de expressão em semelhantes maneiras. Entretanto, a LIVROS DO MAL limitou-se a lançar a escrita de Galera e Pellizzari.

Para efeito de tese – nunca como uma forma de classificação –, vamos falar inicialmente de DENTES GUARDADOS. Daniel Galera, como bem disse Cris Gutkoski em ZERO HORA no dia 1° de outubro, "exercita a difícil simplicidade da narrativa", no que se pode interpretar uma busca, muito justificável aliás, de compreensão da parte do leitor. Galera não se deixa seduzir por desafios, tentativas de inovação formal ou jogos intelectuais. O interesse do escritor é cativar pela simplicidade, quiçá pela identificação. A ordem dos contos e a maneira em que eles são dispostos é perfeita neste sentido. A primeira frase do livro é um defloramento. Fala, inclusive, de um defloramento. O ritmo do conto vai pulsando num crescente incessante de modo que, ao final de "Amor Perfeito", é impossível não estar irremediavelmente cativado. O afinamento com a literatura pop se percebe em constantes citações à músicas, livros e filmes supostamente conhecidos pelo público. Falando ainda de conjunto, os contos são muito recorrentes à temática dos questionamentos existenciais onde o álcool e o sexo são fugas quase diárias, acompanhados (e muitas vezes em conflito) com as obrigações profissionais. O trabalho é o supremo suplício em Daniel Galera. O amor, o sexo, as viagens e a bebida são delícias que abrandam o terrível cotidiano em que o aspecto profissional é o elemento opressor, juntamente com as obrigações escolares – os dois numa espécie de grupo a que poderíamos chamar de imposições da vida social.

Às limitações do livro. Embora importantes para o conjunto da obra, analisados individualmente os contos "Todas as rosas do balde" e "Será numa Quinta-feira” são textos dispensáveis. O primeiro explora um real-naturalismo de maneira até agradável ao longo de quase todo o texto, mas termina com uma cena banal, desprovida de conflito ou estranhamento. O segundo, "Será numa Quinta-feira”, se presta muito mais a uma crônica do que um conto, não que isto seja fundamental. O problema é que soa óbvio, ainda que com uma frase de conclusão primorosa.

Os textos de DENTES GUARDADOS que se destacam pela qualidade são "Escrava Branca”, "Os Mortos de Marquês de Sade", "Alguma psicologia" e "Dafne Adormecida". "Escrava..." é talvez um retrato definitivo dos relacionamentos da modernidade em forma de ficção (que acreditamos de gênero fantástico), explorando ao máximo a insensibilidade e a insegurança ao lado de "Intimidade", outra narrativa de importância fora de série. Em "Os Mortos..." há uma adjetivação fenomenal: "atenção ruminante". O conto em si também é muito denso e de agradável leitura que, paradoxalmente, também causa desconforto. "Psicologia" é uma delicada análise social da prostituição e suas implicações, acabando numa cena ótima que, infelizmente, termina em um último parágrafo desnecessário, que felizmente não estraga o resto. "Dafne Adormecida" é um gran finale. Além de praticamente resumir o livro com um apanhado de todas as temáticas abordadas, ainda encerra com uma cena compulsiva de sexo em que todas as frustrações e anseios do narrador – e, por extensão, do leitor – são expurgadas para adormecerem sob a frase final de boa noite.

Como última análise a DENTES GUARDADOS, pode-se observar que Daniel Galera segue a consagrada tendência da narrativa psicológica com inserções do narrador, quase na totalidade das vezes em primeira pessoa. Nesta escolha, parece coerente a abstinência de audácias formais – ainda que uma reticência composta por apenas dois pontos, ao invés de três, possa ser notada em alguns contos – e a opção de conduzir uma narrativa direta, sem muitos floreios. Grande livro.

Daniel Pellizzari, mais conhecido como mojo, explora outros recursos em seu trabalho. Ao contrário de Galera, não segue linearidade em seu livro, aliás, talvez não possua mesmo uma temática rigidamente definida, além das universais aspirações poéticas da humanidade. Sejam elas, a tão impossível quanto eterna descoberta e compreensão da origem e sentido da vida, a perplexidade diante do absurdo da ordem social – a solidão, principalmente a inexorável solidão dentro da qual o ser humano se descobre depois de todas as realizações ou do fracasso das tentativas. Parece denso? Não contente, mojo ainda adorna todos os seus monstros com o acessório da experimentação formal. Amante de Joyce, joga com sonoridade e significação, construindo sua narrativa de trabalhada complexidade.

No conto de abertura, mojo convida o leitor para uma iniciação ao seu circo de horrores. A protagonista de "Teias" é um recém chegado morador de um apartamento que alimenta contraditória relação com as aranhas do lugar. Perturbador, como a narrativa minimalista "As boas maneira do acaso", sobre a qual é impossível dizer qualquer palavra sem entregar todo o resto. "História de amor número 17” é um caos minucioso que tem início no título, profanando, paradoxalmente de maneira a um só tempo delicada e brutal, um dos mais preciosos tabus da sociedade: bebês. Tudo para chegar a uma conclusão de caráter mais uma vez paradoxal: tanto óbvia quanto oculta no subtexto. "Missal para rastejantes" carrega um ótimo efeito visual, dando a nítida impressão – reforçada pela primeira frase, "formigas.” – de que se está diante de um mar de insetos. Mas não é só isso: o jogo de maiúsculas com minúsculas tem o poder de destacar as palavras mais importantes, decifrando com maestria alguns aspectos da personalidade feminina. Com um título que remete delicadamente ao título do volume, "O vôo das ovelhas" talvez seja o melhor de toda a coletânea. Mesclando passagens grifadas em itálico e parágrafos em fonte normal, o escritor elabora o conflito entre loucura de manicômio e loucura tolerada socialmente – talvez uma forma de declarar a inexistência da sanidade total. Nas passagens em itálico, são introduzidas personagens com nomes – pessoas comuns, porém com singularidades que sugerem a loucura inerente a suas existências de gente normal. Nas partes sem grifo, é contada a história de um anônimo interno de uma igualmente anônima instituição psiquiátrica, que segue toda uma metodologia diária em suas atitudes com um estranho objetivo. De maneira tocante, o autor narra o esforço do "louco" em enganar a todos, inclusive, e isto é o mais dramático, sua mãe. Ironicamente, o doente mental possui reflexo sobre sua vida, ao contrário dos cidadãos que passam o dia no Centro da cidade, os quais, ao chegarem a suas respectivas casas, transformam-se de maneira simbolista em produtos alimentícios que materializam o ordinário da seqüência de seus dias.

Como crítica negativa a OVELHAS..., pode-se apontar a facilidade em que identificamos em alguns contos as influências do autor, mesmo entremeados por outros de notável gênio e originalidade. Em "missal...", por exemplo, o mesmo jogo entre maiúsculas e minúsculas que torna o texto eficiente deixa claro que, em algum momento de sua vida, Daniel Pellizzari leu Charles Bukowski e gostou – o mesmo recurso se verifica em "Paloma" e "Tango Sobremesa". No sexto parágrafo da página 73, em "Paloma", mojo escreve "cinzebranco", tornando ainda mais cabal sua filiação ao clube dos adoradores de James Joyce. O argumento de "Arnaldo e os Moinhos” possui uma incômoda semelhança com algumas propostas de redação que estudantes de 1° grau recebem para exercício em sala de aula, algo como "pense no seu escritor favorito e escreva algo parecido". "Catuaba" tem o grande valor de homenagear o fundamental Bar João, mas ainda assim não escapa de ser uma narrativa de propósito raso, mais parecendo uma necessidade pessoal do autor de ridicularizar melancolicamente um tipo muito tradicional em alguns meios universitários ou ainda autoditadas. Não são propriamente evidências que limitem a incrível qualidade da obra, mas tornam claro que a maturidade definitiva ainda não chegou para a escrita de Pellizzari.

Os dois lançamentos chegam para oficializar uma efervescência cultural que há muito tempo ocorre em Porto Alegre através de publicações na internet, e que só agora encontrou dois representantes à altura de sua grandiosidade. Galera e Pellizzari foram os primeiros e tiveram de quebra as colaborações da conjuntura externa, da meteorologia e da sempre indispensável mídia. Esperemos que não seja preciso tudo isso para que novos nomes apareçam e logo. O bom gosto penhoradamente agradece.