Ou clavículas

Capa
Ou clavículas


Autor Cristiano Baldi
Ilustrações Guilherme Pilla
Gênero Contos
Coleção Contra a capa
Ano 2002
Especificações 112p. ; 12x18cm
Preço R$ 15,00 (como comprar)
Sobre o autor Cristiano Baldi nasceu em Caxias do Sul em 1976. É formado em Publicidade e Propaganda. Publicou textos em diversos sites e fanzines de internet e trabalhou em projetos de cinema em Porto Alegre.



Trecho do livro
"(...) Além de ninfomaníaca e vegetariana, ela era meio professora de História. As escolas (ao menos as particulares) deveriam ter mais professoras como ela. Vez por outra, me trazia da rua uma aluninha para foder. Não sei bem como ela tratava disso. E não era uma dessas bobagens fetichistas, pois ela nem sequer assistia. Deixava a aluna no sofá, nos apresentava e saía para comprar croissant. Comia, no balcão da confeitaria, dois ou três doces, sincronizando com minhas gozadas em casa. Ou então aproveitava uma trepada com alguma figurinha patética que arranjava: hippies, poetinhas underground de gola rolê, fotógrafos, escritores iniciantes, jovens advogados engomados até as orelhas e demais babacas do gênero.

Éramos um casal. Definitivamente. E ela, na mesma medida em que gostava de passar os dias na cama ou aterrorizando a vizinhança, adorava sumir por uns dias sem dar notícias. Voltava molambenta, às vezes chapada, e cismava em passar pomadinhas pelo corpo. Ela tinha uma caixa de pomadas e cremes. E, invariavelmente, se automedicava, não importando a natureza do que lhe incomodava. Quando sua mãe morreu (e a mãe era dessas velhas que fazem doces para fora, vão a concertos beneficentes e lançamentos de livros tomar vinho de graça e roubam guardanapos de lanchonetes. O tipo de pessoa que tem um recipiente em forma de galinha para guardar os ovos), ela chorou por duas horas, tomou alguns uísques e ocupou o resto do dia passando pomada no banheiro das Capelas São Lucas.

Era emblemático que Andréia, cética (e cínica, primordialmente cínica), usasse pomadas esperando sentimentos correlatos inexistentes. Eu me sentia culpado por não precisar de muitos apoios. Nessas horas, me perguntava: ei cara, não será o momento de fazer uma terapia grupal, que bem escolhida sempre acaba em putaria? Correr no parque, talvez? De alguma forma, e isso já dizia meu pediatra (que chamava meu pau de xixizinho), eu precisava de um bode expiatório. Segundo ele, não era higiênico isso de, em todas as situações, eu culpar exatamente os culpados. Mandou meu pai levar eu e meu xixizinho ao psicólogo. Mas lá em casa não acreditavam nem em Deus, que dirá em Psicologia. Podia ter receitado uma caixinha de pomadas, mas ele era ruivo e, como tal, pouco perspicaz e deveras ortodoxo.

Enfim.

Que Deus tenha a velha.

Depois da morte da mãe, Andréia começou com a mania de não querer trepar todo dia. Eu achava que ela estava misturando as coisas. No final das contas, ela era uma peça importante na minha vida. Ser um vagabundo obsceno, dar golpes em geral (se eleger síndico, por exemplo, para mamar nos superfaturamentos do condomínio), fingir de deficiente na fila do banco, comer Andréia: essa era a minha rotina. Talvez eu não amasse Andréia, mas amava o estilo de vida e amava sua influência. Tudo o que saía da boca dela (e acho que aqui podemos incluir os vômitos das bebedeiras, o cheiro morno de placa bacteriana, os beijos, a porra não engolida) me metia nas veias um tremor quente, orgástico, e me enchia de um narcisismo cruel que justificava tudo. E, absolutamente, não estou transferindo culpas e responsabilidades. Culpa não havia. E responsabilidade é um troço mais pragmático, que pouco tem haver com o teatro complexo e doentio (saudável, antes de tudo), que nós em conjunto (repito, em conjunto) havíamos criado. Responsabilidade é conversa de delegado. (...)"



O que foi dito
"A surpreendente contundência da alma feminina é sempre o guia condutor para os desenlaces trágicos, inesperados e muito belos de seus contos. Citando como exemplo, Petruska, Sabrina apaixona, Mariêngel e Outro dia a gente tenta, desmascaradamente, os embaraços, os desajustes, os medos e as carências dos homens são revelados frente ao mundo visceral, transgressor e de abandono sentimental das mulheres. Em Sabrina Apaixonada, a faxineira de um escritório que dá nome ao título do conto, chega ao ponto de amputar partes do seu corpo afim de mostrar seu amor para o executivo Ricardo, um homem que por traz da sua aparente frieza, carrega consigo um fardo que, para sustentá-lo, requer grande dose de resignação e sensibilidade. Nesse ínterim de tragédias nelsonrodriguianas, o autor nos mostra como cada sexo lida com o fantasma da solidão." (Rodrigo Moreno, Ócio do Caramujo)

***

"Baldi sabe que, ao invés do que mostram as propagandas na TV, ninguém é perfeito. O grande prazer da sua escrita é explorar esses territórios imperfeitos, escuros, nojentos, gosmentos e, quase invariavelmente, patéticos. Enquanto uns verão nas histórias de Ou Clavículas situações cômicas, outros não deixarão de encontrar, nas mesmas histórias, exemplos do mais acabado mau gosto. (...) Esse cinismo profissional de Cristiano Baldi encontra eco em autores como o Philip Roth de Complexo De Portnoy ou o Marcelo Mirisola de O Herói Devolvido." (Fabio Diaz Camarneiro, B*Scene)

***

"Situaçoes bizarras (e até sobrenaturais) sao inseridas no cotidiano de pessoas aparentemente comuns, como num grito irracional de denúncia diante do absurdo dos microrrituais que compoem a rotina. Nao é o tipo de livro que uma professora indicaria como primeira leitura a seus alunos, pela violência e causticidade da ironia que Baldi emprega. Seja na figura de um executivo que teve o pênis amputado em Petruska, seja em Meia Briga e Alguns Poemas, o melhor conto do livro segundo o próprio criador, o mote é a trivialidade com que sao tratadas situaçoes que começam flertando com o grotesco e acabam abraçando-o como única alternativa. O deboche é recurso valorizado no livro, na figura de intervençoes politicamente incorretas do narrador brotando como verdades absolutas, alfinetando do catolicismo ao judaísmo, da jovem filiada ao PFL ao militante petista, do deficiente físico ao dançarino de boate. " (Hermano Freitas, Zero Hora)